terça-feira, 23 de novembro de 2010

Viajantes do tempo

Não sei se vocês leem ou não, porque nunca vejo comentários por aqui. Mesmo assim a vontade de escrever coisas diferentes permanece. Tenho sorte de conseguir essa abertura nos jornais por onde passo. E espero que continue assim.

Essa história me emocionou bastante e divido agora com vocês.

Viajantes do tempo

Futuros doutores integram projeto de humanização da Faculdade de Medicina do ABC


Por Camila Galvez

Foto: Fernando Nonato/Diário do Grande ABC

Os quatro viajantes e suas malas rústicas entram no quarto de Iriana Aparecida Farina Silva. "Eles acabaram de descer de um trem e vieram contar histórias para mim."

Iriana,48, está internada no Hospital de Ensino Padre Anchieta, em São Bernardo, há um ano e quatro meses. Ela sofre de ELA (esclerose lateral amiotrófica), doença do sistema nervoso que não tem cura. Respira por meio de um oríficio na traqueia, procedimento conhecido como traqueostomia. É a paciente que mais anseia pela visita dos ‘viajantes''.

Ana Maria Blumetti, 26 anos, Ana Carolina de Souza Alencar, 23, Fernando Towata, 23, e Paulo Henrique Barbosa, 21, são futuros doutores. Estudam na FMABC (Faculdade de Medicina do ABC) e fazem parte da primeira turma de contadores de histórias do Projeto Sorrir é Viver, formada neste ano.

Para Iriana, porém, eles são apenas os viajantes. Isso porque sempre carregam uma mala, na qual guardam as histórias e experiências que compartilham com seus atentos ouvintes, sejam eles pacientes de hospitais do Grande ABC ou moradores de asilos e orfanatos. A de Ana Maria, por exemplo, era de seu avô, hoje com 100 anos. "Ele a usou quando veio da Itália", conta.

A de Carol não é tão viajada assim: foi comprada na Praça da República, em São Paulo, e estampa a figura de Charles Chaplin. "Ele é minha fonte de inspiração", diz.

Tempo
Iriana tem companhia no quarto que ocupa. Rosalina Martins Ferreira, 73, está com a doença de Chagas, herança dos tempos de infância vividos em casa de pau a pique, no interior de Minas Gerais. Os olhos de ambas se fixam em Fernando enquanto ele declama O Tempo, poema de Mário Quintana. É o preferido de Iriana. Rosalina ouve pela primeira vez.

Há dez dias internada, ela tem esperanças de voltar logo para casa. Sua fé fica evidente quando o agora ouvidor de histórias pede: "Conte algo para nós, Rosalina".

Com a voz baixa e entrecortada pelo som da respiração de Iriana, Rosalina responde emocionada: "O que eu tenho para falar é da minha fé em Deus e da capacidade que tenho de amar. É isso que vocês trazem para gente, um pouquinho do amor de vocês".

Os futuros médicos saem em busca de novos pacientes, mas deixam a porta aberta nos corações de quem passou pela experiência. "Espero que eles voltem logo", torce Iriana.

Rotina
O Projeto Sorrir é Viver é mais conhecido pelos cursos de formação de clowns, que tem como principais objetivos a humanização do médico e a transformação do ambiente hospitalar. Inspirado nos Doutores da Alegria e na experiência do médico Hunter Patch Adams, formou seis turmas desde 2005, ano em que foi criado por estudantes da FMABC (Faculdade de Medicina do ABC).

A narração de histórias é novidade no projeto: os primeiros alunos passaram por seis meses de aulas neste ano, de março a outubro, e desde então estão viajando pela região carregando malas cheias de letrinhas e mentes repletas de ideias.

Para a coordenadora de enfermagem do Hospital de Ensino Padre Anchieta, Márcia Mazotti, ouvir histórias auxilia no tratamento dos doentes, principalmente em casos de internações longas. "A alegria dos contadores é contagiante e os pacientes ficam mais motivados para enfrentar os desafios impostos pela patologia", garante.

Eles não são os únicos beneficiados por esses jovens vestidos de preto, com boinas na cabeça e suspensório colorido. Márcia comenta que os funcionários também esperam pela chegada dos jovens contadores de histórias. "O hospital sai da rotina, ganha mais vida, mais som. O ambiente muda e isso faz bem para todos", afirma.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Histórias que a demolição não apaga

Não, eu não abandonei o blog. Sim, eu estou sumida, mas tem um motivo: mudei de emprego! Sai do ABCD Maior e, há uma semana, estou no Diário do Grande ABC.

Também tenho mais uma novidade gigantesca, para quem ainda não sabe: estou noiva e me caso em junho do ano que vem! Sim sim, estou mega feliz e mega ocupada com os preparativos! rsrsrsrs. E toda boba olhando essa aliança linda na minha mão. *.*

Deixo hoje para vocês minha primeira experiência com pé no Jornalismo Literário publicada aqui no Diário. Espero que gostem.

Histórias que a demolição não apaga

Relíquias e memórias das Indústrias Reunidas Fábricas Matarazzo estão se perdendo em São Caetano

Foto: Acervo da Fundação Pró-Memória de São Caetano

Por Camila Galvez

A história das Indústrias Reunidas Matarazzo se confunde com a vida de Josefina Perella. De seus 85 anos, 60 foram vividos na mesma casa, no número 10 da atual Praça Comendador Ermelino Matarazzo, em São Caetano. Dali, dona Josefina assiste à demolição das antigas ruínas promovida pela prefeitura, que pretende erguer um parque em parte do terreno.

Anos antes, em 1949, São Caetano se emancipava de Santo André e dona Josefina se casava com Emígdio Perella. O marido da aposentada trabalharia por 50 anos como mecânico das oficinas de fundição do grande império industrial.

Entre os colegas, Emígdio não era conhecido pelo nome, muito menos pelo sobrenome de sua família, tradicional no município. Josefina se lembra do dia em que, recém-casada, precisou procurar o esposo na fábrica para resolver um problema em casa. Quando se dirigiu ao porteiro da empresa, pediu:

- Quero falar com o senhor Emígdio Perella.

- Mas quem é Emígdio Perella? Só conheço o Mosquito!

Mosquito era o apelido de boleiro de seu Emígdio, que jogava no time formado por trabalhadores da Matarazzo. Naquela época, a maioria dos funcionários era conhecida pelo apelido na empresa. “Esse tempo era uma beleza. O bairro estava sempre movimentado, a fábrica funcionava em três turnos, sem parar. A praça parecia um formigueiro”, relembra. Nas décadas de 1940 a 1950, auge das indústrias na cidade, 10 mil pessoas passavam por lá durante os três turnos, todos os dias.

Saudades dona Josefina também sente do marido, que morreu há nove anos. Para ela, o que restou da Matarazzo hoje é o barulho e a poeira da demolição.

Império em ruínas

Josefina Perrela vivia há 46 anos na mesma casa quando Everton Calício começou a se interessar pela história dos Matarazzo. Era 1995, ano em que a mansão construída pelo Conde Franscesco Matarazzo na avenida Paulista no fim do século 19 veio abaixo após uma liminar judicial.

Aos poucos, com sua curiosidade de menino, chegou onde muita gente não conseguiu – ou não quis. Embrenhou-se pelas ruínas de São Caetano, jogou bola no terreno contaminado por mercúrio e BHC (hexaclorobenzeno), entrou no prédio da antiga Cerâmica Matarazzo e viu um estoque inteiro de azulejos e fornos de cerâmica abandonados. Tudo isso serviu para aguçar a vontade de conhecer mais sobre o antigo império em ruínas.

De acordo com os estudos de Calício, as Indústrias Matarazzo se instalaram em São Caetano em 1912 após o arrendamento das instalações da antiga fábrica de velas, glicerina, sabões e óleos vegetais Pamplona. A empresa começou a se desenvolver por volta de 1926, quando o Conde inaugurou no que seria chamado de Núcleo São Caetano a primeira fábrica de raion (seda artificial) no Brasil, a Visco-Seda Matarazzo.

Na década de 1920 também foi erguida a Vila Matarazzo, conjunto de habitações populares para operários, verdadeiro luxo na época. Em uma dessas casas, de pé até hoje mas totalmente descaracterizadas, vive Ana Freitas. Por 11 anos ela serviu café para os "chefões" da Matarazzo. "Era o tempo das vacas gordas", relembra.

Desconfiada, Ana hesitou em falar sobre o assunto, mas acabou por ceder após me garantir que comprou a casa onde vive e pagou direitinho. "No começo morava de aluguel, cinco cruzeiros por mês. Era barato. Depois ofereceram para comprar ", diz.

Nas memórias de Ana, a mais marcante é o casamento de Marina Matarazzo Suplicy, neta do conde Francesco Matarazzo Jr, conhecido como Conde Chiquinho e herdeiro do império. "Fiquei 15 dias na mansão da família no Morumbi para ajudar na cozinha. O conde Chiquinho gostava de ficar entre as panelas, olhando o que a gente fazia e dando palpite. A mãe da noiva e filha dele, dona Filomena, aparecia sempre e nos tratava como igual", afirma.

Ana me deixa de lado para cuidar do feijão no forno. As memórias da Matarazzo ficam para trás quando ela fecha a porta da casa.

Vida na Cerâmica

A partir da década de 1930, é instalada em São Caetano a fábrica de louças Claúdia, uma das maiores do setor de louças e azulejos no país. A produção diversificada, marca da Matarazzo, fica evidente quando se observa o leque de produtos: seda, louça e azulejo, papel, papelão e celulose, ácidos, soda caústica, hexaclorobenzeno, acetileno, carbureto de cálcio e ácido sulfúrico. "A estratégia empresarial dos Matarazzo era a de aproveitar os insumos restantes dos processos para dar origem a novos produtos", explica Calício.

Essa característica também levaria o império à ruína, na opinião do pesquisador. "A Matarazzo não se especializou em nada e foi engolida pelas empresas estrangeiras e a indústria automobilística por volta da década de 1980", afirma.

Mas o que começou a enterrar de verdade a empresa foi a morte de um operário por contaminação por BHC, a primeira que ocorreu no Brasil, no fim dos anos 1980. A produção química foi totalmente encerrada, permanecendo em funcionamento em São Caetano apenas as unidades de fábricação de TNT (tecido não tramado) Matflex, e a Cerâmica Matarazzo, que fabricava azulejos.

No prédio da Cerâmica Matarazzo, cercado por muros altos cobertos de plantas e pichações e fechado por portões enferrujados, a sensação de abandono é evidente. Alguém mais atento, porém, é capaz de reparar em um portão com cadeado novo, na campainha que ainda funciona, em uma janela pela qual é possível ver luz e ouvir música e barulho de louça lavada.

Severina de Oliveira, aposentada, 67 anos, atende meu chamado e conversa comigo no portão. No começo, não quer dizer seu nome, mas aos poucos se solta. O marido, Mateus Gomes Mariano, ainda trabalha na empresa na qual começou aos 17 anos. Hoje atua na fábrica de Ermelino Matarazzo, na Capital.

Ela trabalhou em São Caetano por 25 anos. Foi demitida em 2008 quando a Matflex, última fábrica do antigo império, fechou suas portas. "Não tenho do que reclamar. Me aposentei na Matarazzo, criei meus filhos aqui e ainda moro nessa casa sem pagar aluguel, porque fico olhando a propriedade. É uma pena que tudo acabou", lamenta.

Mais gente mora na antiga Cerâmica abandonada. Uma senhora chega a atender a campainha. "Não tenho a chave. Não vou abrir. Não moro aqui".

O abandono persiste, e tentar falar com a família sobre o assunto não foi possível. O império ruiu e se fechou para o mundo. Mas as lembranças de quem viveu essa época de desenvolvimento e crescimento continuam vivas, mesmo que escondidas pelos escombros de um passado que, infelizmente, continua se perdendo dia a dia.


São Caetano vai preservar fachada de antiga fábrica

A demolição das paredes que compunham parte das Indústrias Reunidas Fábricas Matarazzo começaram em outubro e devem durar cerca de dois meses. A prefeitura tem a intenção de erguer um parque no local, mas ainda depende de autorização da Cetesb (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo).

A administração apresentou ao órgão estadual estudo de investigação ambiental e avaliação de risco da área. De acordo com a Cetesb, esses estudos definirão possíveis medidas de remediação para o local e somente então serão autorizados usos futuros para a área.

No início da demolição, a intenção do secretário de obras da cidade, Júlio Marcucci, era preservar o prédio que está instalado no terreno para abrigar uma escola de educação ambiental. No entanto, devido ao estado de abandono da construção, apenas a fachada da Praça Comendador Ermelino Matarazzo ficará intacta.


Todo o processo de demolição está sendo documentado, conforme Marucci. "As paredes foram filmadas e fotografadas antes de vir abaixo. Todo esse material será reunido posteriormente e apresentado na escola de educação ambiental como uma forma de fazer com que as crianças conheçam a história da industrialização do município, que começou com a Matarazzo", garante.