quarta-feira, 31 de março de 2010

Reminiscências de Américo

Conheci Américo Del Corto e sua esposa, Lina Maria Del Corto, no desfile cívico do aniversário de Ribeirão Pires, cidade do ABC Paulista. Na ocasião, chamou-me a atenção a vitalidade do senhor que, mesmo com cabelos bem branquinhos, estava no alto do palco para acompanhar a passagem das escolas da cidade, embora para ele e sua mulher houvesse cadeiras de plástico brancas à disposição.

Também foi a primeira vez que ouvi o hino de Ribeirão Pires e soube que ali estava o seu autor. E senti então vontade de conversar com aquele senhor. Naquela barulheira do desfile, consegui pegar apenas seu telefone, que Lina me entregou num cartão. A primeira história que escrevo sobre Américo segue abaixo, e será publicada na coluna Eu ABCD do jornal no qual trabalho. Mas é apenas a primeira de muitas, pois assim como Américo tem muitas reminiscências de Ribeirão, ainda tenho muita história pra contar sobre Américo. Aguardem!

Reminiscências de Américo

Por Camila Galvez

Foto: Andris Bovo (Brigadu!)

Ribeirão Pires cidade serrana
Acolhedora, saudável, humana
Deste Brasil pequenina fração
Mas muito grande no meu coração
Com tua névoa e frio garoar
Ou então com o sol a brilhar
Ribeirão Pires cidade serrana
O teu povo de ti se ufana.
Berço de bravos imigrantes
Que de suas pátrias distantes
Um dia partiram a buscar
Nova vida no além-mar

Teu nome é Ribeirão Pires
Homenagem a família Pires
Pioneiros desta região
Às margens do ribeirão

Muitos dos mais de 112 mil moradores de Ribeirão Pires não sabem a letra do hino da cidade, que o professor Américo Del Corto tem na ponta da língua. Com 88 anos, 87 deles vivendo na mesma casa na avenida Francisco Monteiro, um hoje senhor de olhos azuis, cabelos brancos e óculos de aro grosso relembra diariamente tudo que viu e viveu em seus anos como ribeirãopirense. Ele é o autor da letra e da música, criadas em 1974 mas oficializadas como hino oficial apenas em 1988.

Américo fez de tudo um pouco nesse quase um século de vida. Trabalhou na olaria do pai, Pedro Del Corto, foi motorista de caminhão e fotógrafo amador. Mas sua paixão sempre foi a música. “Desde pequeno via meus irmãos tocando e sempre quis aprender. Mas aqui perto de casa, nos anos 1920, não tinha nada e era difícil ter acesso aos instrumentos musicais. O som que eu mais ouvia era da estrada de ferro e dos carros de boi, que me acordavam toda manhã. Quando me tornei adulto, fui aprender música na escola do Mário Mascarenhas e, depois, abri a minha própria escola. Cheguei a ter 90 alunos de acordeão e registrei tudo em fotos”, relembrou.

Fotos essas que Américo guarda em seu acervo, que reúne ainda troféus, coleções de lápis, caixas de fósforos e moedas antigas, além de recortes de jornais que falam sobre suas realizações. O professor também é autor de “Reminiscências - Ribeirão Pires que vi e vivi”, livro que, de acordo com ele, relata como era a vida naquela época boa que não volta mais. “Não é um livro de história. É um livro sobre gente, sobre como se vivia de verdade nesse tempo. Porque hoje, o que eu vejo aí fora não é vida, não”.

Apesar de não ter se afeiçoado às mudanças trazidas pela passagem do tempo na pequena cidade serrana, o músico e professor não abre mão do computador e das facilidades da Internet. Quem reclama é Lina Maria Del Corto, há 62 anos companheira de Américo. “Quando ele está na frente dessa máquina, esquece até de mim”. Américo rebate: “Ela exagera. O nome dela deveria ser exagero”. Mas não é exagero dizer que Américo tem reminiscências demais para relembrar.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Educação mais que especial

A ideia de fazer esse blog surgiu de uma conversa e da vontade de praticar um pouco do que tenho aprendido na pós-graduação em Jornalismo Literário (JL). Mas não é só isso. Surgiu também da vontade de fazer um jornalismo mais humano, mais gostoso de ler, e sair um pouco dessa coisa "todo dia" que vivo na redação.


Os textos que vocês vão ler aqui terão falhas, com toda certeza, porque estou num processo de aprendizado. O que quero não é dar exemplo, e sim desenvolver aos poucos o meu estilo por meio da clássica tentativa e erro.


Em algumas matérias publicarei também a versão "oficial" do texto, ou seja, aquela que será publicada no veículo onde trabalho, até para que aqueles que se interessem possam fazer uma comparação.


O primeiro da leva fala sobre a luta de uma mãe que tenta garantir uma bolsa de estudos para o filho autista na escola em que ele já estuda há um ano. Primeiro vou postar a versão JL e, depois, o link para a versão online. Comentários e críticas são bem vindos.


Sintam-se em casa até mesmo para opinar o que vocês gostariam de ler por aqui, ok?


E, no post de estreia, fica uma frase do Marcos Faerman que li e gostei bastante: "Sou um repórter. Isto quer dizer que não sou um contista, um professor ou um marciano. Sou um repórter".


Educação mais que especial


A história de uma mãe que luta pelo direito de ter uma bolsa de estudos bancada pelo Estado na escola em que escolheu para o filho autista
Por Camila Galvez
A porta branca decorada com mãozinhas coloridas de criança feitas a tinta guache se abre. Lucas Marchesini Milena caminha de maneira hesitante, o olhar sem fixar nenhum ponto específico. Veste bermuda azul marinho e a camiseta branca do uniforme da escola, devidamente identificado, assim como os demais estudantes. Nos pés, ao invés do tênis, opção feita pela maioria das mães ao enviar os pimpolhos para a escola, o jovem de 14 anos usa um sapato tipo crocs de plástico azul. Os pés são grandes para o tamanho do menino, característica que costuma ser comum nessa idade.


Apesar de não olhar diretamente para mim, Lucas vem em minha direção e senta-se na cadeira de plástico ao meu lado. Todos na sala começam a rir, e eu acompanho o sorriso.


- Mas esse Lucas é um danadinho mesmo, ele gostou de você!

Alba Regina Marchesini Milena é mãe de Lucas e está sentada ao meu lado também, à direita, enquanto o filho ocupa a cadeira da esquerda. Olho para o garoto e logo sai de meus lábios o cumprimento, o primeiro indício da vontade de estabelecer a comunicação entre dois humanos:

- Oi!

Ele, porém, não responde. Sequer desvia os olhos para mim. O comportamento não é falta de educação: Lucas é autista e não fala. Estuda no Núcleo CrerSer, em São Bernardo, especializado em atender crianças, jovens e adultos com déficits intelectuais dos mais variados, entre eles o autismo. Alba e o marido, Eduardo Martiliano Milena, pagam mensalmente R$ 740 pela educação do filho. Apenas Eduardo trabalha, prestando serviços de consultoria.

- Minha profissão é ser mãe do Lucas.


Questões financeiras
Alba e Eduardo estão “apertados” financeiramente, pois o filho também depende de outros tipos de tratamento de saúde, além da educação especializada. O autismo é uma síndrome caracterizada por desvios de comunicação, atenção e imaginação, o que gera problemas comportamentais. É mais frequente em meninos, como Lucas, do que em meninas, e os primeiros indícios ocorrem, geralmente, antes dos três anos de idade, como foi com Lucas também. Os autistas têm dificuldades de interagir com as pessoas, inclusive de maneira não verbal, possuem comportamentos esteriotipados, obsessão por partes de objetos, inflexibilidade em quebrar rotinas, problemas na dicção, risos em situações inapropriadas ou inesperadas, ausência ou pouca expressão facial e possibilidade de ser agressivos consigo ou com outras pessoas. (Para saber mais, clique aqui)


No Estado de São Paulo, há determinação da Justiça, datada dos anos 2000, de que o poder público deve garantir bolsa de estudos e tratamento para crianças autistas, visto que elas não podem ser absorvidas pela rede pública estadual e requerem atendimento especializado, tanto educacional como de saúde. (Para ver o texto da lei, clique aqui) A Secretaria de Estado da Educação tem mais de 30 entidades educacionais especializadas no atendimento a autistas, sendo que só em São Bernardo são quatro instituições credenciadas para esse atendimento. Em todo o Estado mais de seis mil crianças com autismo leve são atendidas nas escolas da rede estadual e aproximadamente 350 com autismo em grau mais elevado recebem atendimento em uma das instituições credenciadas.


Alba ficou sabendo da sentença que favorece seu filho por intermédio da escola na qual ele estuda. No entanto, tenta há quase um ano garantir o que é seu por direito, mas não teve resultados positivos até agora. É o que ela me conta antes de Lucas vir para a sala em que estamos a fim de posar para a sessão de fotos que ilustrará a matéria.


- Logo que entrei com o pedido na Secretaria de Educação, a resposta veio super rápido, em torno de 20 dias, já encaminhando o Lucas para uma escola que não tínhamos escolhido. Na verdade, o Estado manda todos os estudantes do ABCD para essa escola.

Alba refere-se a GAPI (Escola de Educação Especial de Ensino Infantil e Fundamental), também localizada em São Bernardo. O Estado afirma que ele é quem deve fazer a escolha pela instituição. Questionei os critérios, mas a resposta foi técnica: “o credenciamento da instituição se faz por critérios técnicos levantados pelo Centro de Apoio Pedagógico e pelas respectivas Diretorias de Ensino”, dizia a nota. Também questionei se a CrerSer era uma das escolas conveniadas, mas nada veio sobre isso no e-mail que me foi enviado.


Questões de adaptação
Mas por que a mãe não quer que Lucas vá para a GAPI? É fácil imaginar: o jovem estuda há mais de um ano na mesma escola. Autistas têm problemas de adaptação. Lucas apresentou alterações recentes quando mudou de casa com a família, e chegou até mesmo a ter convulsões. Trocá-lo de escola significaria sofrimento para ele e para os pais.


- No começo deste ano letivo ele também teve dificuldades para se adaptar aos novos professores aqui no CrerSer. Ele ficava agitado, não queria vir para a aula. Mas as professoras daqui tem especialização na área e sabem lidar com esses casos. Agora ele está mais tranquilo.


A questão da adaptação seria realmente um problema? Para tirar a prova, resolvi ligar para a GAPI e marcar uma visita. Quem me recebeu, com um sorriso nos lábios e cheia de pulseiras, brincos e colares balançantes, foi a diretora clínica da instituição, Gilda Pena de Rezende. A escola, sem dúvida, é muito maior que a CrerSer: cerca de 150 alunos estudam ali. No restante, no entanto, as escolas se parecem: são organizadas, há dois professores por sala de aula para cerca de oito alunos, e todos tem especialização na área.


Gilda faz questão de enfatizar seu currículo: é neuropsicóloga e já trabalhou no Hospital das Clínicas, em São Paulo. Foi pioneira na educação especial em São Bernardo. Diz que o Estado a escolheu por causa da qualidade da instituição que ela gere, que tem mais de 20 anos no mercado. Pergunto, então, se ela acha que os autistas teriam dificuldades de adaptação ali. Em minha mente, ela responderia que não, que os profissionais poderiam lidar bem com isso e coisas desse tipo, e por isso a resposta me surpreende:


- Sim, eles teriam, até porque é uma característica da síndrome. Pais já me procuraram dizendo que adoraram a minha escola, mas que não querem tirar seus filhos, já adaptados, do local onde estudam. Eu digo que tenho certeza de que eles se adaptariam aqui também, mas claro que isso leva tempo, e alguns pais não estão dispostos a passar novamente por todo o transtorno de mudar o filho de escola.


É esse sofrimento que Alba, profissão mãe do Lucas, quer evitar.


- Me sinto revoltada, porque quero manter meu filho aqui e tenho esse direito. Imagina a dificuldade para mudar o Lucas de escola?


O tom de voz que Alba usa para falar sobre o assunto deixa claro seu instinto protetor em relação ao filho. A mãe sabe que ele precisa de cuidados especiais. Quando visitamos a sala de aula de Lucas, seus olhos brilham de orgulho.


- Ele se parece comigo, você vai reconhecer facinho!


Realmente Lucas tem os traços da mãe. Alba tem luzes no cabelo, mas é possível enxergar, por debaixo das mechas loiras, a mesma cor dos fios do menino. Os olhos também são parecidos, e até mesmo o formato dos rostos se confunde.


Lucas está entretido fazendo um desenho. Alba diz que o filho gosta de fotos, mas o menino fica um pouco retraído com a presença da fotógrafa que me acompanha. Por isso ela pede que ele vá até a sala na qual conversávamos antes. É lá que Lucas se senta ao meu lado e observa, à sua maneira, a continuidade de nossa conversa, já com gravadores desligados.


- Vou entrar na Justiça. Quero garantir o direito do meu filho de estudar no lugar que escolhi.


Alba me lembra uma leoa, capaz de fazer tudo por sua cria. Por mais que isso possa parecer clichê, é essa a imagem que vem a minha mente. Por estar disposta a tudo, é possível que a mãe consiga garantir um direito previsto em determinação judicial, mas não sem muita luta, como é de (mau) costume em terras tupiniquins.


A última questãoLucas assobia. Pega a tinta guache amarela e colore uma borboleta com a ajuda de uma professora. Estala a língua. Está mais a vontade com as fotos. Mesmo sem se comunicar, está feliz onde está. Para quê, então, tirá-lo dali?