domingo, 8 de agosto de 2010

A governanta de Mengele

Escrever essa matéria foi um exercício de paciência. Ela foi feita num dia em que compartilhei sentimentos de muita alegria e muita tristeza. Foram sentimentos contraditórios que ficaram no meu coração naquele dia, e acho que coloquei um pouco disso na matéria.

Conversar com Elza Gulpian foi uma tarefa difícil. Quando o Renan (o verdadeiro responsável por essa série sobre nazistas do ABC, eu sou mera auxiliar) me disse para ir visitá-la, já achei que daí pudesse sair uma boa história. Na primeira tentativa, não a encontramos em casa, apesar de ficar esperando por ela um bom tempo. Foi bom assim, pois acabei fazendo amizade com a filha dela, Carla, que fez com que fosse muito mais fácil falar com ela depois.

Para marcar a visita, telefonei para Elza, que não queria me receber. Disse que estava cansada, que os jornalistas já tinham explorado muito essa história e que não queria mais falar. No entanto, consegui convencê-la a ao menos me receber, e contar o que quisesse contar.

Aí está o que Elza me contou, acompanhada de uma boa xícara de café preparada por Carla. Uma das matérias mais gratificantes que já fiz na vida. Obrigada, dona Elza.

A governanta de Mengele


Elza Gulpian, que trabalhou para o nazista na década de 1970, conta detalhes sobre a rotina do “Anjo da Morte”


Por Camila Galvez



Elza Gulpian tinha 28 anos quando começou a trabalhar na casa de Pedro Mengue. O homem de estatura mediana e olhos claros tinha o hábito de andar sempre de calça e camisa social. Na cabeça, chapéu, como ainda mandava o costume dos anos 1930, embora estivessem nos anos 1970. Ela preparava salada de frutas para ele. Seu Pedro comia arroz e feijão, carne e frango, tudo preparado por Elza sem um pingo de sal.

- Ele fugia de sal. Escondia para que eu não usasse na comida. Acho que teve algum problema de saúde.

Seu Pedro escondia também outras coisas: sua identidade, seus filhos, seu passado como Joseph Mengele, médico nazista que matou mais de 400 mil pessoas no campo de concentração de Auschwitz e escolheu a região do Eldorado, em Diadema, como refúgio. Ali, viveu em uma chácara nas proximidades da Billings na qual cultivava um jardim com as próprias mãos.

- Além do jardim, também construía móveis simples, prateleiras e coisas assim. Na casa dele só havia móveis rústicos, ele gostava de comprar em lojas de antiguidades.

Um desses móveis era um baú trancado a chave, que Elza imaginava guardar a verdadeira identidade de Seu Pedro. Na época, ela não desconfiou de nada, nem mesmo quando limpava o quarto e deu de cara com uma espécie de documento.

- O que você está fazendo?

- Limpando, seu Pedro!

- Não é para você mexer nisso. Devolva já!

Ele tomou o documento das mãos de Elza sem que pudesse ver o nome que havia ali. Mas de uma coisa ela tem certeza:

- Não estava escrito Pedro. Mas como é que eu poderia imaginar quem ele era?

Sotaque

Com Elza, Mengele só conversava em castelhano. De família espanhola, ela estava acostumada com a língua.

- Ele não gostava de ficar sozinho. Quando dava minha hora de ir embora, ele me acompanhava até minha casa. Ficava conversando com meus pais. Depois ia caminhar pelas ruas do Eldorado, as mãos no bolso, enrolando para voltar.

Talvez Mengele temesse estar consigo mesmo. Talvez se lembrasse dos dias em que injetou tinta azul nos olhos de crianças, costurou veias de gêmeos ou dissecou pessoas vivas. Talvez ouvisse os gritos dos judeus que mandou assassinar nas câmaras de gás.

No entanto, não parecia se lembrar disso quando dava bailes em sua casa e recebia Elza, a irmã e outras amigas para noites animadas. Também não se lembrava de ser o “Anjo da Morte” quando a convidava para jantar ou quando ia com pai de Elza tomar cerveja.

- Certa vez trouxe o filho para o Brasil, e me apresentou como se fosse sobrinho. Quando fui entrevistada pela Polícia Federal, que procurava por ele, me mostraram a foto desse menino. Só então descobri que era filho de seu Pedro.

Uma vez por mês, Mengele recebia a visita de um homem de cerca de 70 anos, alto e magro, que sempre trazia consigo um envelope. Elza deduz que se tratava de dinheiro.

- Eu não questionava. Ele me pagava em dia, então não tinha por que desconfiar. Mas ele não trabalhava.

Mengele era mantido por uma rede de proteção a nazistas foragidos da Alemanha no pós-guerra, mesma rede que conseguiu escondê-lo até o dia de sua morte, supostamente em 1979.


Alergia

Pouco antes de Elza deixar a casa de Mengele, ele desenvolveu uma espécie de alergia de pele, jamais diagnosticada pelos médicos. Recebia semanalmente a visita de uma pessoa que lhe aplicava compressas de babosa. Todos os dias Elza esquentava a ferro lenços úmidos para colocar sobre o rosto e pescoço de Mengele, como uma forma de aliviar a coceira. Pouco tempo depois, ela deixou o emprego para trás para se casar, mas continuou tendo contato esporádico com Mengele.

- Ele já não estava pensando direito nessa época, não estava com a cabeça boa. Atravessava a rua sem olhar para os carros, andava sozinho sem rumo.

Elza não acreditou quando Liselotte Bossert, dona da casa em que Mengele vivia, contou-lhe que ele havia se afogado em Bertioga, litoral paulista.

- Fui até o imóvel porque eu achava que ele tinha se mudado. Mas estava tudo lá, as roupas no armário. Deduzi que ele tinha morrido mesmo.

Em 1985, sua ossada foi descoberta em Embu, e em 1992 exame de DNA comprovou tratar-se de Mengele.

Elza ainda moraria por dois anos na casa que pertenceu ao nazista. Hoje vive em uma casa modesta na região do Eldorado. Trabalha na casa de “alguns bons amigos”, olhando crianças. Foge de jornalistas, mas nos recebeu com uma xícara de café após alguma insistência.

- Não gosto de falar disso. Eu não tinha como saber quem ele era. Seu Pedro era uma pessoa normal.
Uma pessoa normal que matou milhares de pessoas e cometeu atrocidades com outras tantas apenas porque eram diferentes dele.