sexta-feira, 7 de maio de 2010

A Central do Brasil é aqui

Vocês conseguem imaginar que, em plena era da Internet, com e-mail, Orkut, Twitter, Facebook, Skype e tantas outras formas de se comunicar, ainda existe gente que escreve cartas? Pois a arte de colocar as letras no papel continua viva, e tem muita gente que recorre a ela. Exemplo disso é o serviço prestado pelo Poupatempo no programa Escreve Cartas, que auxilia aqueles que têm dificuldades com a escrita. O programa foi criado após o sucesso do filme Central do Brasil, no qual a personagem de Fernanda Montenegro, Dora, escreve cartas em uma das mais importantes estações de trem do país.

Abaixo a história de três voluntárias super simpáticas e uma mulher cheia de esperança.

E para quem não assistiu ao filme, pode ter um gostinho nesse link.


A Central do Brasil é aqui


Na era da Internet, programa Escreve Cartas do Poupatempo de São Bernardo ajuda quem tem dificuldades com a escrita



Foto: Amanda Perobelli

Maria Luzia Barros Mendonça não se lembra exatamente quantos anos tinha, mas lembra-se bem de quando começou a escrever. Na época, a menina Maria morava na Mooca, bairro da Capital, com a mãe Olívia, analfabeta. A avó Afonsina vivia longe, no município de Mococa, interior de São Paulo, e Maria ri da cacofonia dos nomes do bairro em que passou a infância e a cidade que deu origem a sua família. A menina que começava a conhecer as letras escrevia cartas para a avó, a pedido da mãe. Quando os vizinhos descobriram, os serviços de Maria ganharam o bairro e a letra da simpática negra passou a viajar, fechada em envelopes, para diversos lugares do Brasil.

Hoje, aos 71 anos e vivendo em São Bernardo, Maria encontrou seu lugar: é uma das 29 voluntárias do Programa Escreve Cartas, da unidade do Poupatempo do município. Mais quarenta vagas estão atualmente abertas para interessados em participar do programa. Em plena era da Internet e das comunicações rápidas, homens e mulheres auxiliam quem tem dificuldades com a escrita a se comunicar.

A “escrevedora” Maria é também uma “faladora”. Gosta de conversar e não tem tempo para ficar parada. De pele negra, óculos no rosto e um tiquinho de vaidade nos anéis e pulseiras com temas religiosos, Maria tem riso e verbo solto.

- Sou voluntária no Poupatempo e também participo de trabalhos em outras entidades. Moro há 30 anos em São Bernardo e amo essa terra. Meus cinco filhos já me deram oito netos e dois bisnetos, tô de família criada. Agora quero ajudar os outros e, graças a Deus, sou uma mulher muito letrada, adoro ler e escrever. Assim fica fácil, né?

Maria faz parte da primeira leva do programa, que começou em 2008 na cidade, mas funciona há oito anos em outras unidades do Poupatempo. O índice de analfabetismo em São Bernardo é baixo se comparado ao das cidades da região Nordeste do país. No município do ABCD, 5% da população, ou seja, ao menos 40 mil pessoas, são praticamente cegas para as letras. Há ainda o que a educação chama de analfabeto funcional, que é a pessoa que frequentou a escola, mas não aprendeu o que deveria aprender. Esses não estão computados, mas também existem e precisam de ajuda para escrever suas cartas. São eles que Maria gosta de ajudar, assim como Dina Fernandes Chagas, que também faz parte da primeira turma de voluntários do programa.

- Assisti o filme Central do Brasil, com a Fernanda Montenegro, e fiquei louca, menina! Na hora quis procurar um lugar para ajudar os outros a escrever cartas. Soube do programa, mas na época ele só funcionava em São Paulo. Foi uma alegria quando vi um anúncio no jornal que o Poupatempo da minha cidade estava selecionando voluntários. Me inscrevi correndo.

Dina me revela sua idade ao pé do ouvido, mas não quer que eu conte aos leitores, desculpe. Posso dizer que ela parece mais nova do que realmente é, com seus cabelos loiro-claros, seus brincos, anéis e pulseiras feitos com capim dourado e seu vestido preto com miçangas marrons ao redor do decote. Pergunto se ela se identifica com Dora, a personagem de Fernanda Montenegro em Central do Brasil, filme de 1998 que conta a história de uma mulher amargurada que escreve cartas na estação de trem carioca até conhecer um garotinho capaz de fazê-la colocar o pé na estrada para ajudá-lo a reencontrar seu pai. Quem responde é outra escrevedora, Sônia Maria Cesari, que como Dina não revela quantos anos tem.

- Nós gostamos da Dora, mas somos mais importantes que ela. Aqui a gente escreve e manda a carta de graça, no filme ela escrevia e depois rasgava.

As “escrevedoras” de São Bernardo se envolvem mais com as histórias das pessoas para quem servem de mão e cérebro do que a Dora de Central do Brasil. Não chegaram ainda a sair rumo ao Nordeste para ajudar alguém, mas apenas o fato de ser um ouvido amigo, disposto a beber palavras como se bebe água, torna-as verdadeiras psicólogas, com uma vantagem: não cobram nada pelo tempo que disponibilizam.

- Trabalhei como educadora durante 31 anos e me sinto realizada aqui. Certa vez um rapaz da Paraíba nos procurou porque queria escrever uma carta para algum programa de televisão para que custeassem a viagem de volta para a terra onde ele nasceu. Ele veio andando do bairro Taboão até aqui e chegou sem dinheiro, morto de fome, coitado! Nesse dia foi só a primeira carta que ele escreveu. O homem passou um tempo morando em abrigos de São Bernardo e retornando sempre para pedir que escrevêssemos outra carta para ele. Ficamos muito felizes ao saber que ele finalmente conseguiu uma passagem para voltar para casa. São histórias desse tipo que fazem esse trabalho ser tão gratificante.

Voz a quem não tem

Ao contar a história do paraibano, a “escrevedora” Sônia Maria Cesari citou apenas um dos trabalhos feitos pelo programa oferecido no Poupatempo de São Bernardo e em outras quatro unidades, duas na Capital e duas na Grande São Paulo. Além de escrever cartas para parentes e programas de televisão, as pessoas procuram os voluntários também para preencher formulários, elaborar currículos e ter voz diante das autoridades. É o caso da dona de casa Alexandra Aparecida da Silva, 33 anos, que decidiu mandar uma carta para o secretário de Saúde de São Bernardo, Arthur Chioro. Tímida, Alexandra se aproximou sem conhecer direito o serviço, mas ficou sabendo que ali poderia enviar a correspondência ao titular da Pasta no município.

Há cinco anos Alexandra acorda 4h20 da manhã para levar o filho ao Hospital São Paulo, onde o menino de 13 anos recebe tratamento gratuito para a doença. No entanto, tem de pagar o transporte que os leva até lá. Sem emprego fixo, depende de bicos para se manter. A mão leve de Dina, com as unhas pintadas de um vermelho vivo, percebem a dor na voz contida de Alexandra. Dina também é mãe de um menino e entende a preocupação da mulher sentada diante de si. A identificação fica fácil e a letra trabalhada e desenhada de Dina desliza fácil pelo papel pautado.

Ilustríssimo senhor Arthur Chioro, digníssimo secretário de Saúde:


Meu nome é Alexandra Aparecida da Silva, sou moradora de São Bernardo há 33 anos, e estou com sérios problemas de saúde em relação a meu segundo filho, Henrique Roberto. Foi constatado um quadro de fibromialgia. Sabe senhor secretário, o serviço de saúde não dispõe de médico reumatologista e tenho de arcar com os custos do tratamento que meu filho faz em São Paulo. Gostaria que os senhores desse mais atenção para isso. Atenciosamente.


Alexandra Aparecida da Silva

Alexandra suspira quando coloca a carta na caixa de correio amarela ao lado do balcão de atendimento do programa. Seu nome, naquele momento, é esperança. É isso que as “escrevedoras” do programa proporcionam: a crença de que, talvez, um dia, as coisas vão melhorar.

Um comentário:

  1. Lágrimas nos olhos... Fiquei assim lendo essa matéria. "Lendo"... penso nessa palavra tão comum no meu dia a dia que por vezes esqueço de dar o devido valor a essa capacidade de unir as letras e transformá-las em pensamentos.

    Sabe, sister, seu texto me fez pensar nos inúmeros analfabetos do nosso país. Não nos analfabetos que não sabem juntar letras, mas naqueles analfabetos que não sabem juntar sentimentos como solidariedade, compaixão, boa vontade e justiça. Acho que é por causa desses analfabetos-morais que muitas pessoas passam as dificuldades que as "escrevedoras" observam todos os dias.

    Texto lindo, emocionante e capaz de tocar a alma, como sempre!

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