terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Capela de Santa Luzia ganha réplica

Queria ter postado essa matéria ontem, dia do meu aniversário e dia de Santa Luzia, mas estava meio chateada com algumas coisas e acabei esquecendo completamente. De qualquer forma, leiam como se fosse dia 13 de dezembro. E aproveitem essa história que mistura fé e patrimônios esquecidos pelo poder público.

Capela de Santa Luzia ganha réplica

Construída em 1925, igreja de Ribeirão Pires caiu no começo do ano por causa das enchentes

Por Camila Galvez

Foto: Edmilson Magalhães/Diário do Grande ABC

Rua Tejo, s/nº, Bairro Santa Luzia, Ribeirão Pires. Quem chega ao endereço encontra o que restou da antiga Capela de Santa Luzia: uma quina de parede. O resto é entulho.

A igrejinha foi erguida em 1925 pelos canteiros, funcionários da Pedreira Santa Clara que trabalhavam no corte da pedra para a transformação em paralelepípedos. Os trabalhadores viram na protetora da visão a salvação para seus olhos ameaçados pelas lascas. Em sua homenagem, inauguraram a capela em 13 de dezembro, dia de Santa Luzia.

Hoje, exatamente 85 anos depois, o abandono do local que já foi sagrado deixaria a santa triste. O aposentado Walter Xavier de Araújo, 74 anos, viveu 20 deles numa casinha simples ao lado da capela e acompanhou de perto sua ruína. No início de 2010, as mãos de seu Walter ajudaram a derrubar o que restou da capela quando ela caiu após mais uma enchente. “Todo ano a água chegava por aqui”, diz, apontando o próprio peito. “Não tinha como a igrejinha ficar de pé”. Os moradores destruíram o que restou da construção porque ela ameaçava cair sobre suas casas.

Segundo o historiador Arnaldo Boaventura, do Instituto do Patrimônio do ABC, a chuva começou a derrubar parte da história de Ribeirão após a chegada do progresso ao Bairro Santa Luzia. “Elevaram o nível da rua para fazer o calçamento, o que fez com que a área da igreja acumulasse toda a água da chuva, formando um grande lago”, explicou.

A perda é irreparável, mas deve ser minimizada com a construção de uma réplica da capela. O projeto é fruto de parceria entre o Instituto, a Prefeitura e a Aciarp (Associação Comercial, Industrial e Agrícola de Ribeirão Pires) e está orçado em cerca de R$ 250 mil. O principal obstáculo é angariar o montante. “Pretendemos fazer uma reunião com empresários da cidade em janeiro. O objetivo é tentar sensibilizá-los para a causa e incentivá-los a doar dinheiro ou material de construção”, destacou Boaventura.

Desta vez a chuva não é desculpa para abandono: a réplica será construída em um terreno mais alto, na Rua Giácomo A. Scomparim, próximo ao antigo endereço e ao lado da Escola Municipal Yoshyiko Narita. A criançada vai perder uma quadra de esportes, mas a cidade vai ganhar de novo uma de suas igrejas mais antigas.

Protetora - Enquanto a réplica não sai do papel, a santa protetora da visão está sob os cuidados de uma senhora que reclama: “quase não enxergo mais, filha”. Odete Périco Correia tem 89 anos e sempre cuidou da imagem, que sua família trouxe de Portugal. O suor do pai de dona Odete, Diniz Correia, escorreu pela fronte enquanto ele ajudava os canteiros nas obras da capela.

Antes da igrejinha cair, a santa deixou o altar e foi parar na cômoda de dona Odete. Enfeitada com fitas e um terço, exibe túnica verde e rosa e coroa dourada. Nas mãos, carrega os olhos de seus fiéis em um pequeno prato. Os pés estão descalços, assim como os de dona Odete, escondidos sob o cobertor que ela usa para se aquecer, embora o sol lá fora esteja a pino.

O filho de dona Odete, Renato Périco, 57, está acostumado a ver a santa na casa da mãe. Ao ser questionado se ela voltará para o altar da réplica da capela, ele ri. “Acho que minha mãe não vai deixar não”. E dona Odete completa. “A santa só sai daqui quando eu morrer”.


Patrimônios da cidade estão em ruínas

Ribeirão Pires é uma cidade em ruínas, ao menos no que diz respeito à história. Desde 2005 não há Conselho Municipal do Patrimônio no município. A atual administração revogou o decreto que concedia o tombamento de sete imóveis, entre eles a Capela Santa Cruz, as igrejas de Santo Antônio, Matriz, São José, Anglicana, o Prédio Vila Souza e o casarão da família Richers. Os únicos bens tombados pelo Governo do Estado são a Igreja de Nossa Senhora do Pilar, a mais antiga do Grande ABC, e a Estação Ferroviária.

Outros locais que guardam a memória dos moradores estão se deteriorando. Exemplo disso é a Fábrica de Sal, no Centro. O prédio de tijolo aparente e a chaminé remontam ao passado, mas estão corroídos pelo cloreto de sódio refinado ali. Parte do acervo do Museu Municipal ainda está no prédio, fechado pela prefeitura há cerca de dois anos. Pela janela de vidro sujo é possível enxergar caixas com documentos, um piano, um banner da Secretaria de Educação e uma réplica em miniatura do prédio, entre outros objetos, molhados por água da chuva que infiltrou pelo telhado.

A funcionária pública Lídia Ambrosio dos Santos, 50, lembra-se bem da época em que a filha estudou piano e fez parte do coral da Escola de Música, que ocupou a antiga Fábrica de Sal. “A gente podia vir aqui, sentar nos bancos do lado de fora e ouvir a melodia a qualquer hora”.

A Vila Operária da Pedreira, a maior de Ribeirão Pires, é outro patrimônio perdido. Das 20 casas construídas para os trabalhadores, restam apenas quatro. As demais foram demolidas pelos proprietários da pedreira, que tem interesses comerciais no terreno próximo ao traçado do Trecho Leste do Rodoanel. As casas que resistem em pé foram alteradas em sua arquitetura original, datada do início do século XX.

A dona de casa Margarete Maria de Jesus, 50, é uma das que resistem no local. “Meus filhos nasceram e se criaram aqui, não quero sair”, diz.

Demolição - O antigo Casarão dos Mansuetto, importante família que viveu e investiu no município, foi construído no início da década de 1950, e começou a ser demolido neste ano. A prefeitura embargou a demolição tarde demais. Agora resta pouco do antigo prédio histórico que abrigou uma pizzaria nos últimos anos.

Um dos proprietários se comprometeu a ceder ao patrimônio público as peças consideradas de interesse histórico. O brasão da família, esculpido em mármore italiano, é um dos artefatos que será preservado.

Outro prédio em risco fica próximo à estação de trem e pertenceu à família Eid. Na década de 1930, abrigou o maior armazém de secos e molhados de Ribeirão Pires. Hoje deverá ser demolido para dar lugar a uma passarela da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos).


Curso de restauradores aguarda verba do Ministério da Cultura

A formação de mão de obra especializada em restauração em Ribeirão Pires poderia ajudar a criar uma cultura de preservação de patrimônios históricos. Essa é a opinião de Arnaldo Boaventura, do Instituto do Patrimônio do ABC. O município aguarda verba de R$ 48 mil para instalar o segundo módulo do Curso de Formação de Jovens Restauradores.

A iniciativa do Instituto prevê investimento total de R$ 180 mil para formar turmas de restauradores nas sete cidades. Em 2009, São Bernardo inaugurou a iniciativa, formando 50 jovens nas artes de pintura em afresco, marcenaria, vitrais e gesso, além de aulas de violão e educação patrimonial.

Em Ribeirão, a previsão é formar mais 50 restauradores, com idades entre 16 e 24 anos. O curso tem duração de 200 horas e emite certificado. “Com jovens especializados e conscientes, podemos ajudar a reerguer o patrimônio histórico do município”, garante Boaventura. O Ministério da Cultura, porém, ainda não tem data para liberação da verba.


Ribeirão Pires cria Departamento de Patrimônio Histórico

Após cinco anos da extinção do Conselho do Patrimônio Histórico de Ribeirão Pires, a Prefeitura iniciou neste mês a instalação do Departamento de Patrimônio Histórico da cidade, que integra a Secretaria de Esportes, Turismo, Cultura, Juventude e Lazer. Composto por cinco funcionários, a sede será no Teatro Municipal Euclides Menato, que abriga algumas obras de valor histórico do município. A intenção é digitalizá-las e criar um museu virtual a partir de março do ano que vem.

O pesquisador Arnaldo Boaventura, do Instituto do Patrimônio do ABC, ficará responsável pela coordenação do museu e dos bens patrimoniais, e Talita Ramos dos Santos, pela assessoria de atividades turísticas.

Entre as medidas urgentes destacadas pelos novos funcionários está a restauração dos patrimônios históricos tombados pelo governo do Estado. “Precisamos agilizar os trabalhos na Igreja de Nossa Senhora do Pilar e na Estação Ferroviária para manter a história da cidade viva”, disse Talita. Elaborar uma lista de bens que deverão ser tombados no município também é um dos projetos previstos para 2011, segundo Arnaldo.

O orçamento do novo departamento, porém, ainda é incerto, conforme o secretário Luis Gustavo Pinheiro Volpi. “Vamos discutir isso com o prefeito Clóvis Volpi, mas acredito que essa será uma das prioridades. Queremos transformar os patrimônios em atrações turísticas e atrair mais visitantes para a Estância”, destacou Luis Gustavo.

Para tanto, Talita prevê instalar um projeto turístico que levará crianças e jovens dos sete aos 20 anos para conhecer diversos pontos históricos do município. “A intenção é promover um jogo recreativo e criar a cultura de preservação do patrimônio nos mais jovens”, destacou.

Museu - Por enquanto, o acervo da cidade será apenas virtual, mas a intenção é construir um museu físico no futuro. Enquanto o projeto não sai do papel, obras e documentos históricos estão sendo reunidos e digitalizados para posteriormente ficarem expostos em três pontos do município: o Teatro Municipal Euclides Menato, a sede da Secretaria de Esportes e o Paço Municipal. O custo dos equipamentos, que possibilitarão a interação dos visitantes, é da ordem de R$ 42 mil.

Segundo Volpi, a prioridade é retirar parte do acervo guardado na antiga Fábrica de Sal, ameaçado pela contaminação das paredes. “Sabemos que aquele material está se deteriorando e precisará ser restaurado antes de fazer parte do museu”, admitiu.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

79 anos de equilíbrio

Conhecer dona Phenicia me emocionou em todos os sentidos: por sua garra, sua determinação, sua simpatia, seu jeito de me receber, tudo. Dona Phenicia provocou em mim risos e lágrimas, uma experiência inesquecível e intensa. A cada dia me sinto mais grata por conhecer histórias desse tipo, e por poder narrá-las do jeito que as vejo e sinto.

E para quem quiser ver o desempenho da equilibrista, é só acessar o vídeo no site do Diário do Grande ABC, clicando aqui.

79 anos de equilíbrio


Com nome de princesa e jeito de bailarina, Phenicia Annunciatta Alves de Araújo Crivellaro Motta se apresenta pela primeira vez no Circo Escola


Por Camila Galvez

Foto: Nário Barbosa/Diário do Grande ABC


A sapatilha branca pisa firme no arame, que não tem mais do que um dedo de espessura. Os pés delicados de bailarina desfilam enquanto uma das mãos, enrugada pela idade, busca apoio no professor. A outra vai esticada para garantir o equilíbrio, e se move com graça enquanto ela caminha. A música toca alto, ritmo latino, e o público está de boca aberta.

Então, vem o bambolê, e ela levanta os pés sem se abalar para passar por dentro do objeto. Seu rosto reflete concentração. A maquiagem azul borra no canto do olho, mas em nenhum momento ela desequilibra. A expressão é séria, compenetrada. É a primeira vez que ela sobe no arame para se apresentar no Circo Escola de Diadema.

Phenicia Annunciatta Alves de Araújo Crivellaro Motta nasceu em 23 de março de 1931 e ganhou nome de princesa. A lona branca de estrelas vermelhas erguida no Jardim União se transformou em seu castelo na noite de quinta-feira. Seus súditos foram familiares e amigos de pessoas comuns, que se tornaram artistas no encerramento das atividades do Circo Escola. Phenicia também é artista. Escolheu ser bailarina.

Mas antes Phenicia relutou. Quem a arrastou para o circo foi uma de suas cinco filhas, Giovana, e as netas Beatriz e Verônica. A família chegou à lona em março. "No começo, eu vinha só acompanhar, ficava no cantinho, sentada, fazendo palavras cruzadas." Há dois anos e oito meses, Phenicia perdeu Dandolo Motta, marido e companheiro por 56 anos. "Estava triste, mas minha filha quis me tirar de casa.

Um dia o circo viu Phenicia levantar e, por detrás da cortina do picadeiro, fazer malabares. Daí para o arame foi um pulo, e o rosto antes abatido de viúva ganhou cores. Primeiro uma camada de pó. Depois, a sombra suave aplicada nas pálpebras, que serve de moldura para o traço firme e grosso do lápis de olho azul. Na boca, batom puxado para o vermelho. Nas bochechas, blush para iluminar. "Minha beleza quebrou o espelho", brinca, depois que o vidro se parte no corre-corre que antecede as apresentações.

Cotidiano
Phenicia é dona de casa comum. Dirige até hoje, e aprendeu com o marido a arte de desviar dos malucos no trânsito. "Até trailler eu já puxei", conta, orgulhosa. Dandolo também a ensinou a pescar. "Quando começamos a namorar, tinha nojo da minhoca. Depois pescava mais que ele. O aluno supera o mestre." As lembranças divertem Phenicia quase tanto quanto o circo.

Ela também cozinha massa aos domingos, como boa filha de italianos que é, nascida no bairro do Bixiga, na Capital. "Faço um molho que é uma beleza, deixo ferver por três horas para tirar a acidez do tomate. A família adora o resultado", explica. Durante a semana, ela também ajuda Giovana a fazer salgados e doces para vender em Diadema, onde mora há oito anos.

O circo não é a única arte na vida dessa senhora de pés de bailarina e nome de princesa. Seus dedos longos de unhas bem feitas já passaram pelas cordas do violão e pelas teclas do piano. "Aprendi a tocar porque queria supervisionar as aulas das minhas filhas, saber se estavam aprendendo mesmo", diz a exigente mãe.

Vida de circo
Para se equilibrar no arame, Phenicia treinou por três meses. "Fazer algo útil na vida exige dedicação", ensina, com a sabedoria de quem se doou para o marido e os filhos. "Minha meta é conseguir me apresentar sozinha, sem ninguém segurar minha mão. Quem sabe no ano que vem", vislumbra.

Denis Oliveira, professor de Educação Física e responsável por ensinar Phenicia a ser bailarina do arame, derrete-se pela aluna mais velha do Circo-Escola. "Ela é capaz de caminhar sozinha. Provou isso durante as aulas", garante. Denis acredita que o arame ajuda Phenicia a recuperar o equilíbrio perdido com o acúmulo dos anos.

Na verdade, Phenicia nunca o perdeu. Ele estava ali, talvez meio escondido quando o marido se foi, mas ao encerrar o número com uma reverência e ser aplaudida pelo público, a princesa o toma para si com plenitude. "O circo fez bem para ela, mudou a maneira como enxerga a vida", comemora a filha Giovana.

Phenicia foi esposa, é mãe e avó, dona de casa, cozinheira, princesa e bailarina. Phenicia poderia ser você.