terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Capela de Santa Luzia ganha réplica

Queria ter postado essa matéria ontem, dia do meu aniversário e dia de Santa Luzia, mas estava meio chateada com algumas coisas e acabei esquecendo completamente. De qualquer forma, leiam como se fosse dia 13 de dezembro. E aproveitem essa história que mistura fé e patrimônios esquecidos pelo poder público.

Capela de Santa Luzia ganha réplica

Construída em 1925, igreja de Ribeirão Pires caiu no começo do ano por causa das enchentes

Por Camila Galvez

Foto: Edmilson Magalhães/Diário do Grande ABC

Rua Tejo, s/nº, Bairro Santa Luzia, Ribeirão Pires. Quem chega ao endereço encontra o que restou da antiga Capela de Santa Luzia: uma quina de parede. O resto é entulho.

A igrejinha foi erguida em 1925 pelos canteiros, funcionários da Pedreira Santa Clara que trabalhavam no corte da pedra para a transformação em paralelepípedos. Os trabalhadores viram na protetora da visão a salvação para seus olhos ameaçados pelas lascas. Em sua homenagem, inauguraram a capela em 13 de dezembro, dia de Santa Luzia.

Hoje, exatamente 85 anos depois, o abandono do local que já foi sagrado deixaria a santa triste. O aposentado Walter Xavier de Araújo, 74 anos, viveu 20 deles numa casinha simples ao lado da capela e acompanhou de perto sua ruína. No início de 2010, as mãos de seu Walter ajudaram a derrubar o que restou da capela quando ela caiu após mais uma enchente. “Todo ano a água chegava por aqui”, diz, apontando o próprio peito. “Não tinha como a igrejinha ficar de pé”. Os moradores destruíram o que restou da construção porque ela ameaçava cair sobre suas casas.

Segundo o historiador Arnaldo Boaventura, do Instituto do Patrimônio do ABC, a chuva começou a derrubar parte da história de Ribeirão após a chegada do progresso ao Bairro Santa Luzia. “Elevaram o nível da rua para fazer o calçamento, o que fez com que a área da igreja acumulasse toda a água da chuva, formando um grande lago”, explicou.

A perda é irreparável, mas deve ser minimizada com a construção de uma réplica da capela. O projeto é fruto de parceria entre o Instituto, a Prefeitura e a Aciarp (Associação Comercial, Industrial e Agrícola de Ribeirão Pires) e está orçado em cerca de R$ 250 mil. O principal obstáculo é angariar o montante. “Pretendemos fazer uma reunião com empresários da cidade em janeiro. O objetivo é tentar sensibilizá-los para a causa e incentivá-los a doar dinheiro ou material de construção”, destacou Boaventura.

Desta vez a chuva não é desculpa para abandono: a réplica será construída em um terreno mais alto, na Rua Giácomo A. Scomparim, próximo ao antigo endereço e ao lado da Escola Municipal Yoshyiko Narita. A criançada vai perder uma quadra de esportes, mas a cidade vai ganhar de novo uma de suas igrejas mais antigas.

Protetora - Enquanto a réplica não sai do papel, a santa protetora da visão está sob os cuidados de uma senhora que reclama: “quase não enxergo mais, filha”. Odete Périco Correia tem 89 anos e sempre cuidou da imagem, que sua família trouxe de Portugal. O suor do pai de dona Odete, Diniz Correia, escorreu pela fronte enquanto ele ajudava os canteiros nas obras da capela.

Antes da igrejinha cair, a santa deixou o altar e foi parar na cômoda de dona Odete. Enfeitada com fitas e um terço, exibe túnica verde e rosa e coroa dourada. Nas mãos, carrega os olhos de seus fiéis em um pequeno prato. Os pés estão descalços, assim como os de dona Odete, escondidos sob o cobertor que ela usa para se aquecer, embora o sol lá fora esteja a pino.

O filho de dona Odete, Renato Périco, 57, está acostumado a ver a santa na casa da mãe. Ao ser questionado se ela voltará para o altar da réplica da capela, ele ri. “Acho que minha mãe não vai deixar não”. E dona Odete completa. “A santa só sai daqui quando eu morrer”.


Patrimônios da cidade estão em ruínas

Ribeirão Pires é uma cidade em ruínas, ao menos no que diz respeito à história. Desde 2005 não há Conselho Municipal do Patrimônio no município. A atual administração revogou o decreto que concedia o tombamento de sete imóveis, entre eles a Capela Santa Cruz, as igrejas de Santo Antônio, Matriz, São José, Anglicana, o Prédio Vila Souza e o casarão da família Richers. Os únicos bens tombados pelo Governo do Estado são a Igreja de Nossa Senhora do Pilar, a mais antiga do Grande ABC, e a Estação Ferroviária.

Outros locais que guardam a memória dos moradores estão se deteriorando. Exemplo disso é a Fábrica de Sal, no Centro. O prédio de tijolo aparente e a chaminé remontam ao passado, mas estão corroídos pelo cloreto de sódio refinado ali. Parte do acervo do Museu Municipal ainda está no prédio, fechado pela prefeitura há cerca de dois anos. Pela janela de vidro sujo é possível enxergar caixas com documentos, um piano, um banner da Secretaria de Educação e uma réplica em miniatura do prédio, entre outros objetos, molhados por água da chuva que infiltrou pelo telhado.

A funcionária pública Lídia Ambrosio dos Santos, 50, lembra-se bem da época em que a filha estudou piano e fez parte do coral da Escola de Música, que ocupou a antiga Fábrica de Sal. “A gente podia vir aqui, sentar nos bancos do lado de fora e ouvir a melodia a qualquer hora”.

A Vila Operária da Pedreira, a maior de Ribeirão Pires, é outro patrimônio perdido. Das 20 casas construídas para os trabalhadores, restam apenas quatro. As demais foram demolidas pelos proprietários da pedreira, que tem interesses comerciais no terreno próximo ao traçado do Trecho Leste do Rodoanel. As casas que resistem em pé foram alteradas em sua arquitetura original, datada do início do século XX.

A dona de casa Margarete Maria de Jesus, 50, é uma das que resistem no local. “Meus filhos nasceram e se criaram aqui, não quero sair”, diz.

Demolição - O antigo Casarão dos Mansuetto, importante família que viveu e investiu no município, foi construído no início da década de 1950, e começou a ser demolido neste ano. A prefeitura embargou a demolição tarde demais. Agora resta pouco do antigo prédio histórico que abrigou uma pizzaria nos últimos anos.

Um dos proprietários se comprometeu a ceder ao patrimônio público as peças consideradas de interesse histórico. O brasão da família, esculpido em mármore italiano, é um dos artefatos que será preservado.

Outro prédio em risco fica próximo à estação de trem e pertenceu à família Eid. Na década de 1930, abrigou o maior armazém de secos e molhados de Ribeirão Pires. Hoje deverá ser demolido para dar lugar a uma passarela da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos).


Curso de restauradores aguarda verba do Ministério da Cultura

A formação de mão de obra especializada em restauração em Ribeirão Pires poderia ajudar a criar uma cultura de preservação de patrimônios históricos. Essa é a opinião de Arnaldo Boaventura, do Instituto do Patrimônio do ABC. O município aguarda verba de R$ 48 mil para instalar o segundo módulo do Curso de Formação de Jovens Restauradores.

A iniciativa do Instituto prevê investimento total de R$ 180 mil para formar turmas de restauradores nas sete cidades. Em 2009, São Bernardo inaugurou a iniciativa, formando 50 jovens nas artes de pintura em afresco, marcenaria, vitrais e gesso, além de aulas de violão e educação patrimonial.

Em Ribeirão, a previsão é formar mais 50 restauradores, com idades entre 16 e 24 anos. O curso tem duração de 200 horas e emite certificado. “Com jovens especializados e conscientes, podemos ajudar a reerguer o patrimônio histórico do município”, garante Boaventura. O Ministério da Cultura, porém, ainda não tem data para liberação da verba.


Ribeirão Pires cria Departamento de Patrimônio Histórico

Após cinco anos da extinção do Conselho do Patrimônio Histórico de Ribeirão Pires, a Prefeitura iniciou neste mês a instalação do Departamento de Patrimônio Histórico da cidade, que integra a Secretaria de Esportes, Turismo, Cultura, Juventude e Lazer. Composto por cinco funcionários, a sede será no Teatro Municipal Euclides Menato, que abriga algumas obras de valor histórico do município. A intenção é digitalizá-las e criar um museu virtual a partir de março do ano que vem.

O pesquisador Arnaldo Boaventura, do Instituto do Patrimônio do ABC, ficará responsável pela coordenação do museu e dos bens patrimoniais, e Talita Ramos dos Santos, pela assessoria de atividades turísticas.

Entre as medidas urgentes destacadas pelos novos funcionários está a restauração dos patrimônios históricos tombados pelo governo do Estado. “Precisamos agilizar os trabalhos na Igreja de Nossa Senhora do Pilar e na Estação Ferroviária para manter a história da cidade viva”, disse Talita. Elaborar uma lista de bens que deverão ser tombados no município também é um dos projetos previstos para 2011, segundo Arnaldo.

O orçamento do novo departamento, porém, ainda é incerto, conforme o secretário Luis Gustavo Pinheiro Volpi. “Vamos discutir isso com o prefeito Clóvis Volpi, mas acredito que essa será uma das prioridades. Queremos transformar os patrimônios em atrações turísticas e atrair mais visitantes para a Estância”, destacou Luis Gustavo.

Para tanto, Talita prevê instalar um projeto turístico que levará crianças e jovens dos sete aos 20 anos para conhecer diversos pontos históricos do município. “A intenção é promover um jogo recreativo e criar a cultura de preservação do patrimônio nos mais jovens”, destacou.

Museu - Por enquanto, o acervo da cidade será apenas virtual, mas a intenção é construir um museu físico no futuro. Enquanto o projeto não sai do papel, obras e documentos históricos estão sendo reunidos e digitalizados para posteriormente ficarem expostos em três pontos do município: o Teatro Municipal Euclides Menato, a sede da Secretaria de Esportes e o Paço Municipal. O custo dos equipamentos, que possibilitarão a interação dos visitantes, é da ordem de R$ 42 mil.

Segundo Volpi, a prioridade é retirar parte do acervo guardado na antiga Fábrica de Sal, ameaçado pela contaminação das paredes. “Sabemos que aquele material está se deteriorando e precisará ser restaurado antes de fazer parte do museu”, admitiu.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

79 anos de equilíbrio

Conhecer dona Phenicia me emocionou em todos os sentidos: por sua garra, sua determinação, sua simpatia, seu jeito de me receber, tudo. Dona Phenicia provocou em mim risos e lágrimas, uma experiência inesquecível e intensa. A cada dia me sinto mais grata por conhecer histórias desse tipo, e por poder narrá-las do jeito que as vejo e sinto.

E para quem quiser ver o desempenho da equilibrista, é só acessar o vídeo no site do Diário do Grande ABC, clicando aqui.

79 anos de equilíbrio


Com nome de princesa e jeito de bailarina, Phenicia Annunciatta Alves de Araújo Crivellaro Motta se apresenta pela primeira vez no Circo Escola


Por Camila Galvez

Foto: Nário Barbosa/Diário do Grande ABC


A sapatilha branca pisa firme no arame, que não tem mais do que um dedo de espessura. Os pés delicados de bailarina desfilam enquanto uma das mãos, enrugada pela idade, busca apoio no professor. A outra vai esticada para garantir o equilíbrio, e se move com graça enquanto ela caminha. A música toca alto, ritmo latino, e o público está de boca aberta.

Então, vem o bambolê, e ela levanta os pés sem se abalar para passar por dentro do objeto. Seu rosto reflete concentração. A maquiagem azul borra no canto do olho, mas em nenhum momento ela desequilibra. A expressão é séria, compenetrada. É a primeira vez que ela sobe no arame para se apresentar no Circo Escola de Diadema.

Phenicia Annunciatta Alves de Araújo Crivellaro Motta nasceu em 23 de março de 1931 e ganhou nome de princesa. A lona branca de estrelas vermelhas erguida no Jardim União se transformou em seu castelo na noite de quinta-feira. Seus súditos foram familiares e amigos de pessoas comuns, que se tornaram artistas no encerramento das atividades do Circo Escola. Phenicia também é artista. Escolheu ser bailarina.

Mas antes Phenicia relutou. Quem a arrastou para o circo foi uma de suas cinco filhas, Giovana, e as netas Beatriz e Verônica. A família chegou à lona em março. "No começo, eu vinha só acompanhar, ficava no cantinho, sentada, fazendo palavras cruzadas." Há dois anos e oito meses, Phenicia perdeu Dandolo Motta, marido e companheiro por 56 anos. "Estava triste, mas minha filha quis me tirar de casa.

Um dia o circo viu Phenicia levantar e, por detrás da cortina do picadeiro, fazer malabares. Daí para o arame foi um pulo, e o rosto antes abatido de viúva ganhou cores. Primeiro uma camada de pó. Depois, a sombra suave aplicada nas pálpebras, que serve de moldura para o traço firme e grosso do lápis de olho azul. Na boca, batom puxado para o vermelho. Nas bochechas, blush para iluminar. "Minha beleza quebrou o espelho", brinca, depois que o vidro se parte no corre-corre que antecede as apresentações.

Cotidiano
Phenicia é dona de casa comum. Dirige até hoje, e aprendeu com o marido a arte de desviar dos malucos no trânsito. "Até trailler eu já puxei", conta, orgulhosa. Dandolo também a ensinou a pescar. "Quando começamos a namorar, tinha nojo da minhoca. Depois pescava mais que ele. O aluno supera o mestre." As lembranças divertem Phenicia quase tanto quanto o circo.

Ela também cozinha massa aos domingos, como boa filha de italianos que é, nascida no bairro do Bixiga, na Capital. "Faço um molho que é uma beleza, deixo ferver por três horas para tirar a acidez do tomate. A família adora o resultado", explica. Durante a semana, ela também ajuda Giovana a fazer salgados e doces para vender em Diadema, onde mora há oito anos.

O circo não é a única arte na vida dessa senhora de pés de bailarina e nome de princesa. Seus dedos longos de unhas bem feitas já passaram pelas cordas do violão e pelas teclas do piano. "Aprendi a tocar porque queria supervisionar as aulas das minhas filhas, saber se estavam aprendendo mesmo", diz a exigente mãe.

Vida de circo
Para se equilibrar no arame, Phenicia treinou por três meses. "Fazer algo útil na vida exige dedicação", ensina, com a sabedoria de quem se doou para o marido e os filhos. "Minha meta é conseguir me apresentar sozinha, sem ninguém segurar minha mão. Quem sabe no ano que vem", vislumbra.

Denis Oliveira, professor de Educação Física e responsável por ensinar Phenicia a ser bailarina do arame, derrete-se pela aluna mais velha do Circo-Escola. "Ela é capaz de caminhar sozinha. Provou isso durante as aulas", garante. Denis acredita que o arame ajuda Phenicia a recuperar o equilíbrio perdido com o acúmulo dos anos.

Na verdade, Phenicia nunca o perdeu. Ele estava ali, talvez meio escondido quando o marido se foi, mas ao encerrar o número com uma reverência e ser aplaudida pelo público, a princesa o toma para si com plenitude. "O circo fez bem para ela, mudou a maneira como enxerga a vida", comemora a filha Giovana.

Phenicia foi esposa, é mãe e avó, dona de casa, cozinheira, princesa e bailarina. Phenicia poderia ser você.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Viajantes do tempo

Não sei se vocês leem ou não, porque nunca vejo comentários por aqui. Mesmo assim a vontade de escrever coisas diferentes permanece. Tenho sorte de conseguir essa abertura nos jornais por onde passo. E espero que continue assim.

Essa história me emocionou bastante e divido agora com vocês.

Viajantes do tempo

Futuros doutores integram projeto de humanização da Faculdade de Medicina do ABC


Por Camila Galvez

Foto: Fernando Nonato/Diário do Grande ABC

Os quatro viajantes e suas malas rústicas entram no quarto de Iriana Aparecida Farina Silva. "Eles acabaram de descer de um trem e vieram contar histórias para mim."

Iriana,48, está internada no Hospital de Ensino Padre Anchieta, em São Bernardo, há um ano e quatro meses. Ela sofre de ELA (esclerose lateral amiotrófica), doença do sistema nervoso que não tem cura. Respira por meio de um oríficio na traqueia, procedimento conhecido como traqueostomia. É a paciente que mais anseia pela visita dos ‘viajantes''.

Ana Maria Blumetti, 26 anos, Ana Carolina de Souza Alencar, 23, Fernando Towata, 23, e Paulo Henrique Barbosa, 21, são futuros doutores. Estudam na FMABC (Faculdade de Medicina do ABC) e fazem parte da primeira turma de contadores de histórias do Projeto Sorrir é Viver, formada neste ano.

Para Iriana, porém, eles são apenas os viajantes. Isso porque sempre carregam uma mala, na qual guardam as histórias e experiências que compartilham com seus atentos ouvintes, sejam eles pacientes de hospitais do Grande ABC ou moradores de asilos e orfanatos. A de Ana Maria, por exemplo, era de seu avô, hoje com 100 anos. "Ele a usou quando veio da Itália", conta.

A de Carol não é tão viajada assim: foi comprada na Praça da República, em São Paulo, e estampa a figura de Charles Chaplin. "Ele é minha fonte de inspiração", diz.

Tempo
Iriana tem companhia no quarto que ocupa. Rosalina Martins Ferreira, 73, está com a doença de Chagas, herança dos tempos de infância vividos em casa de pau a pique, no interior de Minas Gerais. Os olhos de ambas se fixam em Fernando enquanto ele declama O Tempo, poema de Mário Quintana. É o preferido de Iriana. Rosalina ouve pela primeira vez.

Há dez dias internada, ela tem esperanças de voltar logo para casa. Sua fé fica evidente quando o agora ouvidor de histórias pede: "Conte algo para nós, Rosalina".

Com a voz baixa e entrecortada pelo som da respiração de Iriana, Rosalina responde emocionada: "O que eu tenho para falar é da minha fé em Deus e da capacidade que tenho de amar. É isso que vocês trazem para gente, um pouquinho do amor de vocês".

Os futuros médicos saem em busca de novos pacientes, mas deixam a porta aberta nos corações de quem passou pela experiência. "Espero que eles voltem logo", torce Iriana.

Rotina
O Projeto Sorrir é Viver é mais conhecido pelos cursos de formação de clowns, que tem como principais objetivos a humanização do médico e a transformação do ambiente hospitalar. Inspirado nos Doutores da Alegria e na experiência do médico Hunter Patch Adams, formou seis turmas desde 2005, ano em que foi criado por estudantes da FMABC (Faculdade de Medicina do ABC).

A narração de histórias é novidade no projeto: os primeiros alunos passaram por seis meses de aulas neste ano, de março a outubro, e desde então estão viajando pela região carregando malas cheias de letrinhas e mentes repletas de ideias.

Para a coordenadora de enfermagem do Hospital de Ensino Padre Anchieta, Márcia Mazotti, ouvir histórias auxilia no tratamento dos doentes, principalmente em casos de internações longas. "A alegria dos contadores é contagiante e os pacientes ficam mais motivados para enfrentar os desafios impostos pela patologia", garante.

Eles não são os únicos beneficiados por esses jovens vestidos de preto, com boinas na cabeça e suspensório colorido. Márcia comenta que os funcionários também esperam pela chegada dos jovens contadores de histórias. "O hospital sai da rotina, ganha mais vida, mais som. O ambiente muda e isso faz bem para todos", afirma.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Histórias que a demolição não apaga

Não, eu não abandonei o blog. Sim, eu estou sumida, mas tem um motivo: mudei de emprego! Sai do ABCD Maior e, há uma semana, estou no Diário do Grande ABC.

Também tenho mais uma novidade gigantesca, para quem ainda não sabe: estou noiva e me caso em junho do ano que vem! Sim sim, estou mega feliz e mega ocupada com os preparativos! rsrsrsrs. E toda boba olhando essa aliança linda na minha mão. *.*

Deixo hoje para vocês minha primeira experiência com pé no Jornalismo Literário publicada aqui no Diário. Espero que gostem.

Histórias que a demolição não apaga

Relíquias e memórias das Indústrias Reunidas Fábricas Matarazzo estão se perdendo em São Caetano

Foto: Acervo da Fundação Pró-Memória de São Caetano

Por Camila Galvez

A história das Indústrias Reunidas Matarazzo se confunde com a vida de Josefina Perella. De seus 85 anos, 60 foram vividos na mesma casa, no número 10 da atual Praça Comendador Ermelino Matarazzo, em São Caetano. Dali, dona Josefina assiste à demolição das antigas ruínas promovida pela prefeitura, que pretende erguer um parque em parte do terreno.

Anos antes, em 1949, São Caetano se emancipava de Santo André e dona Josefina se casava com Emígdio Perella. O marido da aposentada trabalharia por 50 anos como mecânico das oficinas de fundição do grande império industrial.

Entre os colegas, Emígdio não era conhecido pelo nome, muito menos pelo sobrenome de sua família, tradicional no município. Josefina se lembra do dia em que, recém-casada, precisou procurar o esposo na fábrica para resolver um problema em casa. Quando se dirigiu ao porteiro da empresa, pediu:

- Quero falar com o senhor Emígdio Perella.

- Mas quem é Emígdio Perella? Só conheço o Mosquito!

Mosquito era o apelido de boleiro de seu Emígdio, que jogava no time formado por trabalhadores da Matarazzo. Naquela época, a maioria dos funcionários era conhecida pelo apelido na empresa. “Esse tempo era uma beleza. O bairro estava sempre movimentado, a fábrica funcionava em três turnos, sem parar. A praça parecia um formigueiro”, relembra. Nas décadas de 1940 a 1950, auge das indústrias na cidade, 10 mil pessoas passavam por lá durante os três turnos, todos os dias.

Saudades dona Josefina também sente do marido, que morreu há nove anos. Para ela, o que restou da Matarazzo hoje é o barulho e a poeira da demolição.

Império em ruínas

Josefina Perrela vivia há 46 anos na mesma casa quando Everton Calício começou a se interessar pela história dos Matarazzo. Era 1995, ano em que a mansão construída pelo Conde Franscesco Matarazzo na avenida Paulista no fim do século 19 veio abaixo após uma liminar judicial.

Aos poucos, com sua curiosidade de menino, chegou onde muita gente não conseguiu – ou não quis. Embrenhou-se pelas ruínas de São Caetano, jogou bola no terreno contaminado por mercúrio e BHC (hexaclorobenzeno), entrou no prédio da antiga Cerâmica Matarazzo e viu um estoque inteiro de azulejos e fornos de cerâmica abandonados. Tudo isso serviu para aguçar a vontade de conhecer mais sobre o antigo império em ruínas.

De acordo com os estudos de Calício, as Indústrias Matarazzo se instalaram em São Caetano em 1912 após o arrendamento das instalações da antiga fábrica de velas, glicerina, sabões e óleos vegetais Pamplona. A empresa começou a se desenvolver por volta de 1926, quando o Conde inaugurou no que seria chamado de Núcleo São Caetano a primeira fábrica de raion (seda artificial) no Brasil, a Visco-Seda Matarazzo.

Na década de 1920 também foi erguida a Vila Matarazzo, conjunto de habitações populares para operários, verdadeiro luxo na época. Em uma dessas casas, de pé até hoje mas totalmente descaracterizadas, vive Ana Freitas. Por 11 anos ela serviu café para os "chefões" da Matarazzo. "Era o tempo das vacas gordas", relembra.

Desconfiada, Ana hesitou em falar sobre o assunto, mas acabou por ceder após me garantir que comprou a casa onde vive e pagou direitinho. "No começo morava de aluguel, cinco cruzeiros por mês. Era barato. Depois ofereceram para comprar ", diz.

Nas memórias de Ana, a mais marcante é o casamento de Marina Matarazzo Suplicy, neta do conde Francesco Matarazzo Jr, conhecido como Conde Chiquinho e herdeiro do império. "Fiquei 15 dias na mansão da família no Morumbi para ajudar na cozinha. O conde Chiquinho gostava de ficar entre as panelas, olhando o que a gente fazia e dando palpite. A mãe da noiva e filha dele, dona Filomena, aparecia sempre e nos tratava como igual", afirma.

Ana me deixa de lado para cuidar do feijão no forno. As memórias da Matarazzo ficam para trás quando ela fecha a porta da casa.

Vida na Cerâmica

A partir da década de 1930, é instalada em São Caetano a fábrica de louças Claúdia, uma das maiores do setor de louças e azulejos no país. A produção diversificada, marca da Matarazzo, fica evidente quando se observa o leque de produtos: seda, louça e azulejo, papel, papelão e celulose, ácidos, soda caústica, hexaclorobenzeno, acetileno, carbureto de cálcio e ácido sulfúrico. "A estratégia empresarial dos Matarazzo era a de aproveitar os insumos restantes dos processos para dar origem a novos produtos", explica Calício.

Essa característica também levaria o império à ruína, na opinião do pesquisador. "A Matarazzo não se especializou em nada e foi engolida pelas empresas estrangeiras e a indústria automobilística por volta da década de 1980", afirma.

Mas o que começou a enterrar de verdade a empresa foi a morte de um operário por contaminação por BHC, a primeira que ocorreu no Brasil, no fim dos anos 1980. A produção química foi totalmente encerrada, permanecendo em funcionamento em São Caetano apenas as unidades de fábricação de TNT (tecido não tramado) Matflex, e a Cerâmica Matarazzo, que fabricava azulejos.

No prédio da Cerâmica Matarazzo, cercado por muros altos cobertos de plantas e pichações e fechado por portões enferrujados, a sensação de abandono é evidente. Alguém mais atento, porém, é capaz de reparar em um portão com cadeado novo, na campainha que ainda funciona, em uma janela pela qual é possível ver luz e ouvir música e barulho de louça lavada.

Severina de Oliveira, aposentada, 67 anos, atende meu chamado e conversa comigo no portão. No começo, não quer dizer seu nome, mas aos poucos se solta. O marido, Mateus Gomes Mariano, ainda trabalha na empresa na qual começou aos 17 anos. Hoje atua na fábrica de Ermelino Matarazzo, na Capital.

Ela trabalhou em São Caetano por 25 anos. Foi demitida em 2008 quando a Matflex, última fábrica do antigo império, fechou suas portas. "Não tenho do que reclamar. Me aposentei na Matarazzo, criei meus filhos aqui e ainda moro nessa casa sem pagar aluguel, porque fico olhando a propriedade. É uma pena que tudo acabou", lamenta.

Mais gente mora na antiga Cerâmica abandonada. Uma senhora chega a atender a campainha. "Não tenho a chave. Não vou abrir. Não moro aqui".

O abandono persiste, e tentar falar com a família sobre o assunto não foi possível. O império ruiu e se fechou para o mundo. Mas as lembranças de quem viveu essa época de desenvolvimento e crescimento continuam vivas, mesmo que escondidas pelos escombros de um passado que, infelizmente, continua se perdendo dia a dia.


São Caetano vai preservar fachada de antiga fábrica

A demolição das paredes que compunham parte das Indústrias Reunidas Fábricas Matarazzo começaram em outubro e devem durar cerca de dois meses. A prefeitura tem a intenção de erguer um parque no local, mas ainda depende de autorização da Cetesb (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo).

A administração apresentou ao órgão estadual estudo de investigação ambiental e avaliação de risco da área. De acordo com a Cetesb, esses estudos definirão possíveis medidas de remediação para o local e somente então serão autorizados usos futuros para a área.

No início da demolição, a intenção do secretário de obras da cidade, Júlio Marcucci, era preservar o prédio que está instalado no terreno para abrigar uma escola de educação ambiental. No entanto, devido ao estado de abandono da construção, apenas a fachada da Praça Comendador Ermelino Matarazzo ficará intacta.


Todo o processo de demolição está sendo documentado, conforme Marucci. "As paredes foram filmadas e fotografadas antes de vir abaixo. Todo esse material será reunido posteriormente e apresentado na escola de educação ambiental como uma forma de fazer com que as crianças conheçam a história da industrialização do município, que começou com a Matarazzo", garante.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Bolsa aluguel: R$ 22 milhões por ano

Essa matéria me aperta o coração só de lembrar a situação dessa família. Ao mesmo tempo, me revolta saber que há pílula anticoncepcional e camisinha de graça no posto de saúde e a pessoa não toma uma atitude pra evitar a gravidez. É uma situação complicada que reflete o estado de atraso e abandono em que ainda se encontra esse país, não apenas a Região na qual vivo e trabalho.

Bolsa-aluguel: R$ 22 milhões por ano


São Bernardo, Santo André e Diadema possuem juntas 4.820 famílias que recebem o benefício


Por Camila Galvez

Foto: Luciano Vicioni

Primeiro veio William, que nasceu na cidade de Patos, perto de Campina Grande, na Paraíba. Wilma chegou a São Bernardo “no bucho”. Depois dela vieram Jéssica, Nayara, Nayane, Natália, Lucas, Lucicleide e uma menina que nasceu no dia 08/10, mas que ainda não tinha nome antes de vir ao mundo. Na casa de Ednalda Mendonça de Souza, 11 bocas comem com os R$ 600 que o marido, Eraldo José de Lima Santos, ganha em uma fábrica de móveis. A casa de três cômodos, alugada no núcleo habitacional Jesus de Nazareth por R$ 315, é a Prefeitura de São Bernardo quem paga, por meio da bolsa-aluguel.

Nalda, como é conhecida entre os vizinhos, tem 41 anos. Antes de fazer parte das 4.820 famílias que recebem o auxílio para custear a moradia na Região, vivia em um barraco também no Jesus de Nazareth, em área de risco.

- O esgoto corria debaixo do barraco. De tanta chuva, as telhas afundaram, molhava até a cama das crianças.

Os assistentes sociais da Prefeitura empurraram Nalda para fora em fevereiro, quando já não tinha mais jeito de ficar por lá.

- Ameaçaram levar meus filhos. Eu que não ia deixar isso acontecer, não.

O mais velho de Nalda tem 19 anos, mas não trabalha. Só não está na escola a menor, Lucicleide, que tem 1 ano e 4 meses. A mãe não conseguiu vaga na creche. Tentou, porque queria trabalhar, mas agora, com mais uma menina recém-nascida, os planos terão de ser adiados.
Nalda tem medo de depender sempre da bolsa-aluguel, auxílio pago pelas Prefeituras da Região e pela CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano) para pessoas removidas de áreas de risco das cidades de São Bernardo, Santo André e Diadema. Juntas, as três Prefeituras gastam mais de R$ 22 milhões anuais com o pagamento do benefício. O proprietário da casa onde a família de Nalda vive quer o imóvel de volta.

- Mas assinamos contrato. Não saio daqui se não tiver outro lugar pra ir.

- E voltar pra Paraíba, Nalda? Não seria melhor?

- Pra Paraíba eu não volto. Aqui as pessoas ajudam a gente, lá eu teria que morar de favor com os outros.
E se não tiver jeito e o dono da casa quiser mesmo que a família saia, Nalda tem na ponta da língua o que vai fazer:

- Juntar um monte de madeira aí e erguer o barraco de novo, no mesmo lugar. Melhor isso que ir pra debaixo da ponte.

Em números - São Bernardo é a cidade que tem o maior número de famílias na mesma situação que a de Nalda: 3.071. Elas recebem até R$ 315 mensais para custear o valor do aluguel. O gasto mensal da Prefeitura é de R$ 1,2 milhão. De acordo com a consultora da Secretaria de Habitação e coordenadora da equipe de trabalho social, Márcia Gercino, cerca de mil famílias não estão inclusas em programas habitacionais da Prefeitura atualmente. “Elas deverão ser atendidas pelo Minha Casa, Minha Vida, do governo federal, que também destina moradias para famílias que foram removidas de áreas de risco”, explicou Márcia.

Em Santo André há dois tipos de convênios que oferecem a bolsa-aluguel à população, um com a Prefeitura e outro com a CDHU, do governo do Estado. São 1.170 famílias atendidas, sendo 589 pela CDHU e 581 pela Prefeitura. O valor máximo do benefício é de até R$ 380 para cada família. No mês de setembro foram pagos benefícios no valor total de R$ 433,9 mil.

Santo André foi a primeira cidade do ABCD a assinar contrato com a União para o programa Minha Casa, Minha Vida, por meio do qual serão construídas inicialmente 352 moradias para famílias que recebam até três salários mínimos mensais. Somente nesta primeira fase do acordo serão beneficiados quase 1.500 andreenses, conforme a Prefeitura, que não esclareceu se esses andreenses são os que recebem atualmente a bolsa-aluguel.

A Prefeitura de Diadema atende 579 famílias, removidas de áreas em urbanização, como os núcleos habitacionais, de áreas de risco ou que sofreram danos causados por incêndio, desmoronamento de encostas, desabamento, enchentes, entre outras ocorrências.  Por mês, gasta-se R$ 200 mil com o pagamento do beneficio, que varia de R$ 300 a R$ 350 na cidade.

As famílias beneficiadas são definidas como demanda prioritária e estão incluídas em projetos habitacionais em andamento e outros a serem iniciados, com recursos do FNHIS (Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social) e do PAC, por exemplo.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Biblioteca para o futuro

12 de junho. Dia de Nossa Senhora Aparecida. Dia das Crianças. Dia de esperança num futuro melhor no alojamento José Fornari, em São Bernardo. A iniciativa pode parecer pequena, mas é enorme, gigante pra quem presencia a vida dessas pessoas nesses malditos alojamentos. Eu tenho uma raiva disso! Não sei qual seria a solução para o sério problema habitacional das cidades do ABC, mas eu sei que alojamento definitivamente não é.

Biblioteca para o futuro

Alojamento José Fornari, em São Bernardo, inaugura espaço com cerca de 600 livros, revistas e gibis, todos frutos de doação


Por Camila Galvez

Foto: Amanda Perobelli

O sonho de Moisés Bispo dos Santos se tornou realidade nesta terça-feira (12/10). Em pleno Dia das Crianças, o alojamento José Fornari, em São Bernardo, inaugurou com festa sua primeira biblioteca comunitária. Os mais de 600 livros, gibis e revistas foram arrecadados por meio de doação graças aos esforços de Santos, que não desistiu da ideia que teve há dois anos até colocá-la em prática. “O pessoal daqui não acreditava muito, mas fui pedindo aos poucos e, no boca-a-boca, consegui abrir”, comemora o tesoureiro da Associação Esperança Viver Melhor, que reúne os moradores do local.

Algumas famílias vivem no José Fornari há quase seis anos em condições precárias. As paredes do alojamento, forradas com cortiças, têm inúmeros buracos, e o chão de madeirite range quando um grande grupo de crianças invade o pequeno espaço improvisado para abrigar os livros. A nova biblioteca está enfeitada com bexigas coloridas, sopradas por Moisés com a ajuda de sua família.

Em meio às prateleiras, também frutos de doações, Lucas Henrique da Silva, 11 anos, encontra um livro de matemática. “É a matéria que mais gosto”, garante. Pergunto se ele pretende estudar ali, e ele responde: “Vai ser mais legal que em casa”.

Débora Bianca, de 12 anos, também está empolgada com a novidade. “Gosto de ler livros de ação. O último que li foi Um estudo em Vermelho, que conta a história de um detetive que desvenda um caso de assassinato”, relembra. A menina que veste casaco rosa, assim como suas bochechas coloridas pelo sol que faz do lado de fora do alojamento, tem na ponta da língua o que quer ser quando crescer: “Médica!”. E será que a biblioteca vai ajudar, Débora? “Tenho que estudar muito. Acho que vai ser um espaço bom pra isso”, arrisca.

Outra pequena moradora, Cristine Raiane, 11 anos, está interessada nos livros didáticos de ciências, sua matéria preferida. Assim como Débora, também já escolheu sua profissão: professora. “Tem que ter muita paciência e ser muito inteligente”, opina.

Futuro

Moisés tem certeza que a biblioteca pode ajudar as crianças da comunidade a ter um futuro melhor. “O próximo passo é fazer um mutirão para catalogar todos os livros”, afirma. E depois, Moisés? “Depois quero levar a iniciativa para outras comunidades carentes. Já comecei a conversar com o pessoal do núcleo Capelinha e, se continuar arrecadando bastante, vou levar uma biblioteca pra lá também”, prevê.

Por enquanto, a unidade do José Fornari funcionará cerca de duas horas por dia. Moisés está em busca de um jovem que possa ficar em período integral no local, voluntariamente. Ainda não encontrou.

A biblioteca continua aceitando doações. Livros, revistas, gibis, computador, estantes, mesas e “tudo o que não for fazer falta para quem doar” são aceitos. Para tanto, basta levar a doação até o alojamento, que fica na avenida José Fornari, 1650, em São Bernardo. Para falar com o Moisés, o telefone é 3424-1633.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Jardim Santo André

Quem disse que não é possível fazer jornalismo literário em fotos?

Quantas histórias você consegue contar vendo esse rostinho? Mais uma filha de mais uma Maria, essa do Jardim Santo André. Estive por lá hoje para fazer o registro fotográfico para a matéria da pós-graduação. Não sou especialista, mas me arrisco de vez em quando. Confesso que, de hoje, esse foi o melhor resultado, mas também a modelo ajudou, né?



A pequena Ana Giulia, filha da Claudinéa, também me deixou fazer uma fotinho dela, e até ensaiou um sorriso por debaixo da chupeta. A boneca que ela segura fez parte da minha infância, e agora protege as noites de sono dela.



Finalizo com as guerreiras do Jardim Santo André, Claudinéa, Débora da Missionários e Maria Regina. Pessoas que conheci e que, por mais simples que sejam, me ensinaram verdadeiras lições de vida. Obrigada, meninas!



segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Ao natural

O texto de hoje vai para as mamães, as que já são ou as que pretendem ser no futuro. Acompanhei a reunião do Grupo MaternaMente no início deste ano, num sábado muito gostoso. O texto, infelizmente, não entrou assim no jornal, mas a versão de Jornalismo Literário merece ser publicada. E quem ganha são vocês!

Ao natural


A história de três mulheres e sua relação com o parto


Por Camila Galvez

Foto: Antonio Ledes

Deborah Delage planejou ter sua primeira filha por meio do parto normal. Desde pequena convivia com a mãe, enfermeira obstetra, que sempre comentou sobre os benefícios de vir ao mundo por meios naturais. Deborah cresceu ouvindo o mesmo discurso, formou-se dentista, mas não se esqueceu dos ensinamentos da mãe. Enquanto estava grávida, planejou-se para que seu grande momento pudesse ser realizado da forma que sempre sonhou. Pequena e magra, Deborah não se importava com a questão física: tinha certeza de que daria conta. Seus olhos não negam: transmitem força e determinação, assim como seu sorriso. No entanto, seu sonho foi barrado por aquilo que ela chama de “sucessão de intervenções desnecessárias”. Deborah teve sua filha por meio de uma cesariana.

A situação se repete hoje de forma assustadora: 57% dos partos realizados em 2008 no Estado de São Paulo foram por meio de intervenções cirúrgicas, diz a Fundação Seade (Sistema Estadual de Análise de Dados). No País, dados de 2009 do Ministério da Saúde apontam que as cesarianas correspondem a 35% dos partos na rede pública. A OMS (Organização Mundial da Saúde) indica taxa ideal em torno de 7% a 10%, não ultrapassando 15%. Na Holanda, a proporção é de 14%, nos Estados Unidos 26%, no México 34% e no Chile 40%. Os números servem para demonstrar que o significado de parto natural não é correto na sociedade de hoje. O que é considerado natural por médicos e mulheres do século XXI é marcar uma data, cortar pele, músculos e útero e arrancar o bebê à força. Os médicos preferem assim por conveniência. As mulheres, por medo.

Estudos demonstram que fetos nascidos entre 36 e 38 semanas, antes do período normal de gestação de 40 semanas, têm 120 vezes mais chances de desenvolver problemas respiratórios que necessitam de internação. Além disso, na cesárea há uma separação abrupta e precoce entre mãe e filho, num momento primordial para estabelecimento de vínculo. Para as mães, as cesáreas significam mais chances de sofrer hemorragia ou infecção no pós-parto e uma recuperação mais difícil.

Tentando mudar essa realidade, Deborah acabou por se voltar, além dos dentes, para outra parte do corpo, essa exclusivamente feminina: o útero. Passou a militar como educadora perinatal e criou o grupo MaternaMente, que se reúne todos os meses para discutir e incentivar o princípio do parto ativo.

- O objetivo principal é disseminar informações de qualidade e de modo acessível para que as mulheres e suas famílias possam compreender e viver a gestação e o parto como eventos naturais, que demandam atenção e apoio, e não intervenções desnecessárias.

Parece discurso pronto, mas Deborah o tem na ponta da língua. Por meio do grupo, ajuda mulheres a entenderem melhor as transformações do corpo e a se colocar como agentes ativas tanto durante a gravidez quanto no momento do parto. Em uma das reuniões do MaternaMente, realizada na cidade de São Bernardo do Campo, em São Paulo, no mês de março, reuniu na sala de sua casa Aline Elise Gerbelli Belini, 30 anos, dois filhos, e Erika Mattes Bittencourt, 28 anos, aguardando sua primeira filha.

Em casa

Aline conseguiu escapar das estatísticas ao ter o primeiro bebê por meio do parto normal, no hospital. Mas foi além quando o segundo filho veio ao mundo em casa, como auxílio de uma parteira. A experiência Aline conta com o rosto iluminado, enquanto tenta acalmar o irrequieto Pedro, de três meses, sentado em seu colo. O pequeno morde os dedos da mãe, sorri e chora sem aviso, reclamando atenção. A mãe se encanta com cada movimento, com cada gesto, com o vínculo que criou com a criança que nasceu por meios naturais, deixando marcado na lembrança e na pele um momento inesquecível. Exatamente por não ter sido tão simples e fácil é que Aline se recorda com carinho do momento em que ouviu pela primeira vez o choro do filho.

- Queria que ele nascesse na banheira, mas não me senti confortável no momento do parto e optei em deixar a água e ir para a cama, onde me senti mais segura.

- E como foi quando ele finalmente nasceu?

- O Pedro estava com o cordão enrolado no pescoço, mas a parteira que escolhi estava preparada e soube lidar com isso, que é até comum nos partos. Se você tem ao lado uma pessoa experiente, que te tranquiliza, tudo é mais bonito. Aproveitei cada segundo e recomendo.

Para não assustar amigos e parentes, Aline preferiu não comentar com alguns deles sobre a escolha. A mãe e o pai ficaram sabendo nos últimos momentos, quando já não havia como voltar atrás.

- Depois que o Pedro nasceu, conto para todo o mundo que fiz o parto em casa. As pessoas ficam admiradas e elogiam, mas tenho certeza que se tivesse contado antes, as mesmas pessoas poderiam ficar assustadas.

Erika acompanha a história sem deixar de acariciar a barriga de oito meses um momento sequer. Ali dentro cresce Alicia, sua primeira filha, que traz à futura mamãe um misto de ansiedade e alegria evidente em seu olhar. Apesar de demonstrar calma e ter a fala mansa, Erika deixa transparecer nos gestos que é uma mulher determinada.

- Quero fazer parto normal também, mas em hospital. Visitei um deles em São Bernardo, mas não me senti à vontade. O funcionário que me apresentou o complexo enfatizou demais a infraestrutura, e de menos a questão humana. Chegou a me dizer que o médico decide, a partir do oitavo mês, se a criança nascerá de parto normal ou de cesariana.

As mulheres da sala ficam indignadas. Deborah acredita que esse comportamento se tornou tão comum porque a cesárea é mais conveniente para o médico, e não por questões de saúde.

- Muitos médicos não querem esperar o bebê decidir a hora certa de vir ao mundo. Para eles é mais conveniente fazer a cirurgia. Quem vai lidar com isso depois é a mulher, que sofrerá as consequências da anestesia e do pós-operatório.

Deborah, então, mune-se de seu kit: uma simulação do aparelho reprodutivo da mulher feita de pano e um cartaz que contém informações sobre partos. Explica assim à mamãe de primeira viagem que o procedimento cirúrgico só é indicado, durante o pré-natal, em casos de placenta previa, herpes genital com lesão ativa na hora do parto, bebê transverso (atravessado no útero) e no caso de mulheres com algum tipo de cardiopatia. Durante o parto, também é possível identificar a tempo casos em que se faz necessária a intervenção cirúrgica, tais como prolapso de cordão (quando o cordão umbilical sai antes da cabeça do bebê), descolamento prematuro da placenta, eclâmpsia (perda de proteína que só pode ser revertida ao cessar a gravidez) e ruptura de vaso uterino de grande calibre.

No hospital

No fim de abril, Erika entrou para a lista das mulheres que escaparam de procedimentos cirúrgicos e viveram o momento do parto intensamente. Alicia veio ao mundo no hospital no dia 22 de abril, de parto normal, com médico plantonista. Sonho realizado.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Um dia de fábrica

Nossa, essa semana está tão corrida! Aliás, as duas últimas semanas estão assim, mas não reclamo não, gosto de dias agitados e noites passadas em boa companhia.

Essa matéria que deixo hoje para vocês foi escrita na última semana, e foi quase como uma folga depois de escrever tanto sobre inovação para a revista InovABCD. Se bem que os textos que fiz sobre o metrô de São Paulo e a Fábrica de Pães da Avape foram de JL, e depois vou postar para vocês.

Por enquanto, fiquem com o texto do Projeto Diadema Mais Educação, proposta de ensino integral da cidade de Diadema, que conta com o apoio do Governo Federal, embora o prefeito Mário Reali tenha me dito certa vez que esse apoio ainda precisa "crescer um tiquinho".

Um dia de fábrica


Legas Group é primeira empresa a participar do projeto Diadema Mais Educação, parceria da Prefeitura com a União


Por Camila Galvez

Foto: Antonio Ledes

O dia de 42 crianças de seis e sete anos da Escola Municipal Mário Santalúcia, em Diadema, começou com uma corrida de obstáculos.

- Fiquem de mãos dadas, sem soltar a mão do coleguinha ao lado.

O aviso é da professora de artes da escola, Paula Aceituano, uma das sete educadoras que acompanham o grupo. Os alunos fazem parte do projeto Diadema Mais Educação, que amplia o tempo de permanência da criança na escola de quatro para no mínimo sete horas, durante as quais os alunos participam de atividades em centros culturais, parques, complexos esportivos e outros espaços públicos e comunitários, criando um “território educativo” que abrange todas as regiões do município. O projeto tem investimento de R$ 2,2 milhões, sendo R$ 1,2 milhão da Prefeitura e R$ 1 milhão do governo federal.

A atividade desta quinta-feira (23/09) é uma novidade do programa: os estudantes do turno da tarde aproveitaram a manhã para visitar a empresa Legas Group, mas antes tiveram de vencer, de mãos dadas, buracos, entulho e lixo, calçadas estreitas demais, postes e árvores que bloqueavam a passagem e dois cruzamentos, sempre acompanhados dos professores. Ao chegar à fábrica, cerca de 10 minutos depois, Paula lança um novo aviso ao grupo:
- Lembrem-se de que não devemos tocar em nada.

- Não pode atrapalhar quem está trabalhando, né? – diz um dos alunos.

- Isso mesmo, não podemos atrapalhar, só observar.

Na Legas Group os alunos são recebidos pelo empresário Nelson Miyazawa, pioneiro em participar do projeto na cidade.

- Bom dia, pessoal!

- Bom dia!

- O que nós vamos conhecer aqui hoje?

- A fábrica!

As crianças respondem em coro, como se tivessem ensaiado previamente. Para Nelson, trata-se de uma satisfação pessoal, visível no sorriso e na paciência oriental. “Com a iniciativa, buscamos dar o exemplo a outros empresários para que também abram as portas de suas empresas para a comunidade”, afirma. A Legas Group desenvolve há 10 anos atividades de esporte e lazer com a população do Bairro Serraria, onde está instalada, e também faz parte do projeto Leitura nas Fábricas, da Prefeitura de Diadema.

O grupo de alunos segue para o passeio pela fábrica, que produz displays para montagem de supermercados e lojas. A estudante Mayara Vech, 8 anos, está empolgada. “Faço taekwondo aqui, mas nunca tinha visto a produção. É muito legal”, garante. O coleguinha Samuel Lima Pontes, 6 anos, também vive a primeira experiência em uma fábrica. Porém, ao ser questionado se quer trabalhar ali quando crescer, ele responde: “Quando eu for grande, quero namorar”. Garoto decidido.

Estímulo

A visita não se limita só a conhecer a produção, mas os alunos também utilizam o espaço da fábrica para desenvolver atividades de leitura e recreação. A articuladora do programa na Mário Santalúcia, Renata Saggioro, explica que a atividade renderá frutos na sala de aula. “Desenvolvermos conteúdos ligados a artes, meio ambiente, matemática e alfabetização, entre outros. A proposta é complementar o aprendizado da sala de aula”, destaca.
A professora Paula é uma das que desenvolverão atividade na aula de artes com os alunos. “Vamos discutir o que eles viram aqui e fazer um desenho ou colagem relacionado ao passeio”, comenta.

O funcionário Antonio Gomes, 49 anos, também gostou da experiência de receber a criançada no ambiente de trabalho. “É uma forma de incentivar os pequenos a escolher uma profissão no futuro”, opina.

Parcerias

A secretária de Educação de Diadema, Roberta de Oliveira, afirmou que a cidade pretende buscar parcerias com outras empresas para ampliar a visitação. “Agora que o projeto chegou à Zona Oeste de Diadema, que tem mais fábricas, vamos tentar ampliar as parcerias para atender mais alunos”, disse. Atualmente, 11 escolas do município participam do projeto Diadema Mais Educação.

Sobre a corrida de obstáculos do início da aventura dos pequenos alunos da Mário Santalúcia, Roberta destaca que a Prefeitura tem promovido campanhas educativas a fim de conscientizar os comerciantes e a população para manter as calçadas limpas e desobstruídas. “A comunidade tem sido receptiva quando vê as crianças nas ruas”, garante a secretária.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Carlos Ferrari, protagonista da própria história

Olá, pessoal, como estão? Esse pequeno perfil foi publicado na coluna Eu ABCD desta terça-feira. O texto poderia ter sido melhor trabalhado se eu tivesse mais espaço e mais tempo com o Carlos, que é uma pessoa fantástica e, embora diga que não quer ser visto como exemplo, é sim um exemplo pra muita gente que reclama da vida. E até mesmo para mim...

Fiquem com um pedacinho da história desse homem que chegou lá. Aproveito para deixar o link do blog do Carlos, vale a pena ler, tem textos muito interessantes. Para ler, clique aqui.

Carlos Ferrari, protagonista da própria história

Morador da Região vai à luta para ocupar seu lugar no mercado de trabalho e na vida


Por Camila Galvez


Foto: Antonio Ledes

Quando Carlos Ferrari estudava Administração no antigo IMES, hoje USCS (Universidade Municipal de São Caetano), enviou seu currículo para uma vaga de estágio. No documento, descreveu suas qualificações, desde o curso técnico em publicidade até a graduação que ainda não havia concluído. Considerava-se de acordo com o perfil da vaga.

Ao chegar à empresa, porém, deixou muda a funcionária que deveria entrevistá-lo. Diante de tal comportamento, resolveu tomar a dianteira:

- Percebi que você está um pouco desconfortável. Enviei meu currículo porque acredito ser qualificado para o cargo, só precisaria de algumas pequenas adaptações para realizar o meu trabalho.

A iniciativa do candidato quebrou o gelo, mas mesmo assim Carlos não foi chamado para o estágio.

- A empresa não estava preparada para aceitar uma pessoa cega.

Hoje com 34 anos, casado e pai da pequena Catarina (com uma semana de vida), Ferrari tem um currículo extenso: formou-se em Administração, fez pós-graduação em Marketing e mestrado também em Administração. É vice-presidente da Avape (Associação para Valorização de Pessoas com Deficiência), professor de Administração do Centro Universitário Ítalo-Brasileiro, presidente do Conselho Nacional de Assistência Social e ainda encontra tempo para ter um restaurante em Santo André. O fato de ser completamente cego desde os sete anos nunca foi um empecilho para que “fizesse o que tinha de fazer”.

Ferrari reconhece que, sem o apoio da família, jamais teria chegado tão longe. Seu pai, Sebastião Ferrari, foi um dos metalúrgicos da Volkswagen que, no fim dos anos 1970, formou um grupo com o objetivo de lutar pelos direitos das pessoas com deficiência no ABCD. A união, nesse caso, fez a força.

- A Avape oferece atendimento para todos os tipos de deficiências. Minha luta não é só para garantir os direitos dos cegos, mas de todos que têm algum tipo de limitação.

Muitas vezes essa limitação mora apenas na cabeça da família e, consequentemente, na do próprio portador de deficiência. Para Carlos, é essencial que as pessoas percebam que o familiar não deve ser trancado em casa, mas sim ter a oportunidade de interagir com outras pessoas, casar-se, ter um emprego e viver a própria vida.

- Assim poderá ser protagonista da sua história, como eu fui.

Sem se apresentar com um exemplo a ser seguido, Ferrari afirma querer viver a sua vida com os mesmos direitos que as pessoas ditas “normais”. Seus olhos podem não ver como a maioria, mas sua alma, esta enxergou – e continua enxergando - bem longe.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

A história de uma adoção especial

Olá, pessoas! Faz tempo que não apareço por aqui, e devo desculpas a vocês. As coisas andaram meio corridas por conta da avaliação do primeiro semestre do curso de pós-graduação da ABJL. Produzi uma matéria sobre os alojamentos do Jardim Santo André, um bairro de Santo André. Ela será publicada no site do Texto Vivo, por isso não posso disponibilizá-la aqui ainda. Mas se alguém quiser ler antes, é só me pedir por e-mail. Tirei nota 9,5! *.*

Hoje venho contar a história de um casal que adotou uma criança em Santo André. Não falarei muita coisa para não estragar a surpresa da matéria.

Boa leitura!


A história de uma adoção especial

Ou como a vida de uma família de Santo André mudou com a chegada do tão esperado filho e das surpresas que isso proporciona


Por Camila Galvez

Foto: Luciano Vicioni


- Temos um menino, branco, 10 meses, saudável. Interessa?

Foi assim que Maria Helena Barizon Ferreira e José Alberto Ferreira Filho encerraram a espera de cinco anos para adotar uma criança em Santo André.

- Parece uma mercadoria, um produto que estavam oferecendo. Mas não importa, porque no fim das contas, deu certo.

O pai avalia assim, mas a mãe não ligou para o jeito como as funcionárias do Fórum de Santo André falaram. Afinal, guardaria para sempre aquela data na mente: 12 de julho de 2006. Foi neste dia, em ano de Copa do Mundo, que começou a realizar o sonho de ser mãe. Sonho esse que começou bem antes, em 1997, quando passou por quatro inseminações artificiais para tentar produzir o que a natureza teimava em não fazer sozinha: uma gestação.

As lembranças dessa época não são boas. Além da angústia da expectativa, Maria Helena sentia-se muito mal com os vários medicamentos que tinha de tomar para realizar o procedimento. Na igreja católica que frequenta, começou a gestação de uma ideia: por que não adotar?

- Pensei que Deus queria me dar um filho, mas talvez não por vias naturais, e sim um filho do coração.

Assim, o casal resolveu desistir da quinta inseminação e deu entrada com o pedido de adoção no Fórum. Passou pelos mesmos procedimentos que as 7.652 famílias do Estado de São Paulo que integram o Cadastro Nacional de Adoção, que hoje tem 1.510 crianças na fila, 400 só no ABCD (leia mais abaixo). A disparidade entre os números ocorre porque a maioria das famílias quer crianças com características específicas: meninas, brancas e com até três anos de idade. Embora a exigência tenha caído quase pela metade em um ano e meio, ainda é realidade: 38% dos futuros pais que estão na fila em todo o País só aceitam crianças brancas.

O pequeno Cauê, uma criança branca, era uma raridade, embora Maria Helena e José Alberto não fizessem exigências em relação à cor do bebê. Só queriam que ele tivesse até três anos. Maria Helena não entende por que demorou tanto para que aparecesse uma criança. Quando enfim o casal foi convidado para conhecer o bebê, ele tinha 10 meses de idade e uma pneumonia. Veio conhecê-los um pouco sujo, magrinho demais e com o nariz escorrendo, mas foi amor à primeira vista. Maria Helena não se conteve:

- Vem com a mamãe, pequeno!

E assim se iniciava uma rotina pela qual o casal ansiou muito. Mas essa rotina ainda viria carregada de surpresas e se tornaria bastante “especial”.

Todo dia, o dia todo
Cauê crescia, mas Maria Helena sentia que havia algo errado. Com um aninho o menino ainda não conseguia firmar o pescoço e as costas para se sentar. Precisava ser apoiado em travesseiros, como se vê na foto de seu primeiro aniversário, que Maria Helena me mostra orgulhosa. Ele já aparece com as bochechas mais gordinhas que na primeira foto que o casal tirou dele, logo quando chegou. Mas a preocupação com o desenvolvimento de Cauê só crescia na mente dos pais.

- Logo após o primeiro aniversário, levamos o Cauê ao neurologista, a pedido da pediatra. O neuro fez uma série de exames e nos sugeriu que procurássemos um psicólogo. O Cauê já tinha movimentos repetitivos e certa tendência a ficar alheio, o que trouxe às nossas vidas, pela primeira vez, a palavra autista.

O casal não sabia o que significava a síndrome, caracterizada por desvios de comunicação, atenção e imaginação, mais frequente em meninos do que em meninas, e cujos primeiros indícios ocorrem antes dos três anos de idade. Os autistas têm dificuldades de interagir com as pessoas, possuem comportamentos estereotipados, obsessão por partes de objetos, problemas na dicção, ausência ou pouca expressão facial, podem ser agressivos e apresentam inflexibilidade em quebrar rotinas.

Cauê tem hoje quatro anos e horários definidos para tudo, todo dia, o dia todo. Come um danoninho sentado no colo da mamãe e dentro do carro do papai após as refeições. Faz tratamentos com fisioterapeuta, psicólogo, fonoaudiólogo e ainda tem tempo para a equoterapia. Estuda em escola comum e deve começar a fazer musicoterapia em breve. Tudo bancado pelo papai.

- E não pesa no bolso, Alberto?

- Por enquanto dá para pagar. Espero que continue assim.

O próximo passo é readequar a nova casa, que está sendo construída ao lado da residência dos pais de Maria Helena, para que Cauê possa ter mais autonomia. O menino que brinca com um violão de brinquedo irá se orientar por meio de figuras que serão espalhadas pela casa. No bebedouro, o desenho de água. Nas gavetas, cada uma com um tipo de vestimenta, desenhos de meias, cuecas, camisetas, bermudas e calças. E assim continua o aprendizado diário da família. Afinal, como Alberto costuma dizer:

- Aprendemos mais com o Cauê que ele conosco.


400 crianças esperam por um lar na Região

Os abrigos das cidades do ABCD têm hoje 400 crianças e adolescentes à espera de uma nova família. Em contrapartida, 411 casais estão interessados em adotar na Região. A conta parece fácil, mas as exigências das famílias em relação ao sexo, idade e cor da pele dos menores diminuem a chance de que ganhem um novo lar.

São Bernardo é a cidade com mais crianças e adolescentes disponíveis para adoção: são 194, com 175 casais interessados em adotar. Em seguida vem Mauá, com 81 crianças e 27 casais; Diadema, com 45 crianças e 38 casais; São Caetano, com 39 crianças e 44 casais, Ribeirão Pires, com 25 crianças e nove casais; Santo André, com 16 crianças e 113 casais, e por último, Rio Grande da Serra, que não tem nenhum menor disponível para adoção no momento, mas tem cinco famílias interessadas.

Em Santo André, o Grupo de Apoio à Adoção Laços de Ternura, da Angaad (Associação Nacional dos Grupos de Apoio a Adoção), é coordenado pela advogada Shirley Van der Zwaan. Foi fundado pela Federação das Entidades Assistenciais de Santo André em 2001 e é considerado referência para pais e pretendentes à adoção na Região. O objetivo do grupo é orientar, subsidiar e acompanhar adotantes e pretendentes para que as adoções tenham êxito, contribuindo para que mais crianças e adolescentes possam desfrutar do direito de ter um lar.

De acordo com Shirley, o projeto tem registrado resultados significativos que vão desde a colocação em família substituta de crianças tidas como inadotáveis, até a desistência de postulantes à adoção, que com a ajuda do grupo, reconheceram-se como pessoas despreparadas. “Muitos pretendentes à adoção, depois de participar dos encontros do grupo, alteram no cadastro da adoção o perfil da criança pretendida, flexibilizando-se não simplesmente para aumentar as chances de terem um filho, mas porque acreditam que é possível amar uma criança independente de sua idade ou da cor da sua pele”, destacou a coordenadora.

Na Região, as cidades de São Bernardo e São Caetano também contam com grupos de apoio da Angaad.

domingo, 8 de agosto de 2010

A governanta de Mengele

Escrever essa matéria foi um exercício de paciência. Ela foi feita num dia em que compartilhei sentimentos de muita alegria e muita tristeza. Foram sentimentos contraditórios que ficaram no meu coração naquele dia, e acho que coloquei um pouco disso na matéria.

Conversar com Elza Gulpian foi uma tarefa difícil. Quando o Renan (o verdadeiro responsável por essa série sobre nazistas do ABC, eu sou mera auxiliar) me disse para ir visitá-la, já achei que daí pudesse sair uma boa história. Na primeira tentativa, não a encontramos em casa, apesar de ficar esperando por ela um bom tempo. Foi bom assim, pois acabei fazendo amizade com a filha dela, Carla, que fez com que fosse muito mais fácil falar com ela depois.

Para marcar a visita, telefonei para Elza, que não queria me receber. Disse que estava cansada, que os jornalistas já tinham explorado muito essa história e que não queria mais falar. No entanto, consegui convencê-la a ao menos me receber, e contar o que quisesse contar.

Aí está o que Elza me contou, acompanhada de uma boa xícara de café preparada por Carla. Uma das matérias mais gratificantes que já fiz na vida. Obrigada, dona Elza.

A governanta de Mengele


Elza Gulpian, que trabalhou para o nazista na década de 1970, conta detalhes sobre a rotina do “Anjo da Morte”


Por Camila Galvez



Elza Gulpian tinha 28 anos quando começou a trabalhar na casa de Pedro Mengue. O homem de estatura mediana e olhos claros tinha o hábito de andar sempre de calça e camisa social. Na cabeça, chapéu, como ainda mandava o costume dos anos 1930, embora estivessem nos anos 1970. Ela preparava salada de frutas para ele. Seu Pedro comia arroz e feijão, carne e frango, tudo preparado por Elza sem um pingo de sal.

- Ele fugia de sal. Escondia para que eu não usasse na comida. Acho que teve algum problema de saúde.

Seu Pedro escondia também outras coisas: sua identidade, seus filhos, seu passado como Joseph Mengele, médico nazista que matou mais de 400 mil pessoas no campo de concentração de Auschwitz e escolheu a região do Eldorado, em Diadema, como refúgio. Ali, viveu em uma chácara nas proximidades da Billings na qual cultivava um jardim com as próprias mãos.

- Além do jardim, também construía móveis simples, prateleiras e coisas assim. Na casa dele só havia móveis rústicos, ele gostava de comprar em lojas de antiguidades.

Um desses móveis era um baú trancado a chave, que Elza imaginava guardar a verdadeira identidade de Seu Pedro. Na época, ela não desconfiou de nada, nem mesmo quando limpava o quarto e deu de cara com uma espécie de documento.

- O que você está fazendo?

- Limpando, seu Pedro!

- Não é para você mexer nisso. Devolva já!

Ele tomou o documento das mãos de Elza sem que pudesse ver o nome que havia ali. Mas de uma coisa ela tem certeza:

- Não estava escrito Pedro. Mas como é que eu poderia imaginar quem ele era?

Sotaque

Com Elza, Mengele só conversava em castelhano. De família espanhola, ela estava acostumada com a língua.

- Ele não gostava de ficar sozinho. Quando dava minha hora de ir embora, ele me acompanhava até minha casa. Ficava conversando com meus pais. Depois ia caminhar pelas ruas do Eldorado, as mãos no bolso, enrolando para voltar.

Talvez Mengele temesse estar consigo mesmo. Talvez se lembrasse dos dias em que injetou tinta azul nos olhos de crianças, costurou veias de gêmeos ou dissecou pessoas vivas. Talvez ouvisse os gritos dos judeus que mandou assassinar nas câmaras de gás.

No entanto, não parecia se lembrar disso quando dava bailes em sua casa e recebia Elza, a irmã e outras amigas para noites animadas. Também não se lembrava de ser o “Anjo da Morte” quando a convidava para jantar ou quando ia com pai de Elza tomar cerveja.

- Certa vez trouxe o filho para o Brasil, e me apresentou como se fosse sobrinho. Quando fui entrevistada pela Polícia Federal, que procurava por ele, me mostraram a foto desse menino. Só então descobri que era filho de seu Pedro.

Uma vez por mês, Mengele recebia a visita de um homem de cerca de 70 anos, alto e magro, que sempre trazia consigo um envelope. Elza deduz que se tratava de dinheiro.

- Eu não questionava. Ele me pagava em dia, então não tinha por que desconfiar. Mas ele não trabalhava.

Mengele era mantido por uma rede de proteção a nazistas foragidos da Alemanha no pós-guerra, mesma rede que conseguiu escondê-lo até o dia de sua morte, supostamente em 1979.


Alergia

Pouco antes de Elza deixar a casa de Mengele, ele desenvolveu uma espécie de alergia de pele, jamais diagnosticada pelos médicos. Recebia semanalmente a visita de uma pessoa que lhe aplicava compressas de babosa. Todos os dias Elza esquentava a ferro lenços úmidos para colocar sobre o rosto e pescoço de Mengele, como uma forma de aliviar a coceira. Pouco tempo depois, ela deixou o emprego para trás para se casar, mas continuou tendo contato esporádico com Mengele.

- Ele já não estava pensando direito nessa época, não estava com a cabeça boa. Atravessava a rua sem olhar para os carros, andava sozinho sem rumo.

Elza não acreditou quando Liselotte Bossert, dona da casa em que Mengele vivia, contou-lhe que ele havia se afogado em Bertioga, litoral paulista.

- Fui até o imóvel porque eu achava que ele tinha se mudado. Mas estava tudo lá, as roupas no armário. Deduzi que ele tinha morrido mesmo.

Em 1985, sua ossada foi descoberta em Embu, e em 1992 exame de DNA comprovou tratar-se de Mengele.

Elza ainda moraria por dois anos na casa que pertenceu ao nazista. Hoje vive em uma casa modesta na região do Eldorado. Trabalha na casa de “alguns bons amigos”, olhando crianças. Foge de jornalistas, mas nos recebeu com uma xícara de café após alguma insistência.

- Não gosto de falar disso. Eu não tinha como saber quem ele era. Seu Pedro era uma pessoa normal.
Uma pessoa normal que matou milhares de pessoas e cometeu atrocidades com outras tantas apenas porque eram diferentes dele.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

No mundo dos Sabinos

No último fim de semana estive na Sabina Escola Parque do Conhecimento de Santo André com meus primos. Foi um passeio muito gostoso. A Sabina é uma ideia genial da Prefeitura de Santo André e vale a pena ser divulgada. Pra quem tem pequenos pimpolhos de férias em casa, é um santo remédio!

No Mundo dos Sabinos


Escola Parque de Santo André traz pinguins, tubarões e dinossauros para entreter a criançada

Por Camila Galvez

Foto: Antonio Ledes



- Como se chama o dinossauro, Tabata?

- Ceratosauro.

- E o que ele come?

- Carne.

- Come muito ou pouco?

- Pouco.

- Pouco? Mas ele é grandão, você acha que ele come pouco e enche o barrigão?

- Ele come um monte!

Tabata, 4 anos, diverte-se com o jogo de perguntas da mãe, Fabiane Carrion, que sempre leva a filha para passear na Sabina Escola Parque do Conhecimento, em Santo André. O parque reúne diversas atrações com um único objetivo: educar brincando.

“Se há um significado, a criança consegue absorver o conteúdo. Essa é nossa intenção: ensinar de maneira interdisciplinar. Ao ver os pinguins de Magalhães, uma das atrações preferidas do parque, a criança pode aprender conceitos que vão desde educação ambiental até matemática”, destacou a coordenadora geral da Sabina, Silvia Fernanda Sanchez.

E não são só os pinguins, que parecem vestir ternos e ficam muito à vontade ao posar para as fotos das crianças, as atrações favoritas da molecada. Tem também o aquário, que reúne no mesmo hábitat tubarões, arraias, baiacus, moreias e outros peixes, e onde o pequeno Lucas, 1 ano, olhos colados no vidro, observa tudo como se quisesse entrar para nadar também. O menino é supervisionado pela mãe, Rita de Cássia Massarini, que também trouxe o filho Raul, de 3 anos:

- “Mãe, me leva para ver o dinossauro?”. É assim que o Raul me pede pra vir na Sabina. Ele adora tudo isso aqui, está pedindo para vir desde o começo das férias.

A Sabina, que ganhou esse nome por causa dos sabinos, um povo que viveu na península ibérica no período de formação de Roma, está com funcionamento diferenciado no período de férias escolares das crianças. O parque abre para visitação de terça-feira a domingo, das 9h às 17h30, sendo que a bilheteria fecha às 16h, até o dia 30/07. Preparem-se papais: para ver tudo, é preciso ter disponível, no mínimo, três horas para o passeio.

Baixinhos e nem tanto -- Mas não é só a criançada que se diverte. Os pais também podem relembrar os conhecimentos de física, química e biologia no piso superior do parque. Ali, microscópios mostram coisas como pele e sangue de sapo, formigas, piolhos e borboletas. É possível ainda fazer a festa na área de musicalização, onde materiais recicláveis se tornam instrumentos musicais.

Há também atrações como o serpentário, uma réplica de Tyranossaurus Rex, outra do Ceratosauro (que se mexe, faz barulho e assusta a criançada), a nave simuladora e um robô que te recebe com um “Oi, tudo bem” e sabe até mesmo falar o seu nome – se você disser a ele qual é, claro.

E para os pequenos de até cinco anos, o espaço Trakitanas reúne atividades de pintura, desenho, marionetes e brinquedos de montar. É lá que me despeço de Tabata, apressada demais que está para brincar no escorregador vermelho do espaço.

- Tchau tia!

Serviço: A Sabina Escola Parque do Conhecimento fica na rua Juquiá, s/nº, Bairro Paraíso (entrada na altura do nº 135). Os ingressos são grátis para alunos e professores das escolas municipais de Santo André, para crianças menores de 5 anos e pessoas com deficiência. Os demais visitantes pagam R$ 10, com meia-entrada para estudantes, professores, servidores públicos andreenses, aposentados e idosos acima de 65 anos. Mais informações podem ser obtidas no telefone 4422-2001.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Minha casa, minha prisão

Olá, pessoal, tudo bem? Estou meio sumida porque concentrei minhas forças na matéria que estou fazendo para a pós. É uma grande reportagem sobre os alojamentos do Jardim Santo André, um bairro de Santo André que conheço desde o início deste ano, quando um senhor morreu num deslizamento de terra em área de risco. Quando finalizar, vou publicá-la por aqui para quem se interessar em ler.

Enquanto isso, fiquem com a história de Edson, cadeirante que perdeu a cadeira de rodas - e o direito de ir e vir - por causa da rua esburacada na qual ele vive, no Parque América, em Rio Grande da Serra. Espero que gosstem e, se lerem, deixem ao menos um recadinho dizendo que passaram por aqui pra que eu não me sinta tão mal ao ver esse "0 comentários" aí embaixo... *momento drama*


Minha casa, minha prisão

Edson Luiz dos Santos perdeu a cadeira de rodas e a liberdade por causa de uma rua esburacada no Parque América, em Rio Grande da Serra


Por Camila Galvez


Foto: Luciano Vicioni



A prisão de Edson Luiz dos Santos poderia ter começado há nove anos num mergulho na represa Rebizzi que lhe tirou o movimento dos braços e das pernas. Edson ficou tetraplégico e engrossou a lista dos mais de 25 milhões de brasileiros que possuem algum tipo de deficiência física, conforme o último Censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

- Quebrei o pescoço. Tive de desviar de uma criança. Não tinha outro jeito.

A prisão de Edson, no entanto, começou há cerca de três meses, quando a cadeira de rodas motorizada que lhe faz as vezes de pernas quebrou. O motivo: o estado da rua Jundiaí, no Parque América, em Rio Grande da Serra. A via de terra, com esgoto correndo a céu aberto, é tão cheia de buracos que até o carro no qual chegamos teve dificuldades para subir a pequena ladeira. Imagine então como é se movimentar ali com uma cadeira de rodas. Edson precisou da ajuda de três pessoas para fazer um trajeto curto pela vizinhança, enquanto esbravejava.

- Enrosca nas pedras e nos buracos. Quando caí, me ralei inteiro. Não dá para continuar assim.

O orçamento da cadeira de rodas feito pela Prefeitura da cidade ficou em R$ 8,5 mil, de acordo com o cadeirante. Ali, pedem para que Edson tenha paciência, pois o processo está na área jurídica, em análise. Paciência, no entanto, é tudo o que ele não tem.

Há duas semanas, um amigo de Edson o levou até a Prefeitura. Edson desceu da cadeira e deitou no calçamento da entrada, com a intenção de atrapalhar os que por ali passavam. Foi a forma que encontrou de protestar.

- Se demorarem demais para resolver o problema, vou fazer de novo.

O homem de barba e cabelos encaracolados castanhos tem um semblante nervoso. Pouco sorri, e os olhos, também castanhos, parecem tristes por detrás das lentes amareladas dos óculos. Ele sente raiva.

Acidente - Adenizia Aparecida Matias Rodrigues foi chamada ao hospital às pressas naquele domingo cuja data tem na ponta da língua: 28 de outubro de 2001. O telefone tocou e disseram que o marido tinha sofrido um acidente, mas estava consciente. Tranquilizada, a ruiva de olhos quase verdes chegou ao hospital para encontrar Edson com um colar cervical e um diagnóstico para o resto da vida.

- Tivemos de nos adaptar, eu e meu filho, que na época tinha seis anos. Conseguimos erguer nossa casa, fazer as coisas aos poucos. Mas agora, com esse problema, o Edson está me deixando quase maluca.

Edson fica nervoso de ficar preso na casa, construída nos fundos da residência da mãe de Adenizia. Sua distração é um computador com internet, que o ajuda a enviar e-mails com fotos do estado da rua para todos os lugares que consegue imaginar. Edson garante que só vai parar de lutar quando conseguir o que quer. E não é apenas uma cadeira de rodas nova.

- Só calo a boca quando tiver a cadeira, o esgoto e o asfalto.

A tríade devolveria a Edson apenas o direito comum a todo cidadão, previsto na Constituição Brasileira: ir e vir.

Bairro é motivo de disputa entre Rio Grande e Santo André

O bairro onde o cadeirante Edson Luiz dos Santos vive está no meio de uma disputa judicial. O Parque América, localizado em área de mananciais, foi loteado por uma imobiliária de Rio Grande da Serra na década de 1980, mas parte do território, que abriga hoje cerca de 62 famílias, pertence à cidade de Santo André.

A rua Jundiaí é apenas uma das várias vias abandonadas pelo poder público. Ali o que se vê em dias secos como os de agora é muita poeira, buracos e esgoto correndo a céu aberto. Quando chove, as ruas se transformam em lamaçal. A disputa judicial causou um embargo que impede que sejam realizadas as melhorias prometidas quando os terrenos loteados foram vendidos aos moradores.

A Prefeitura de Rio Grande da Serra afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que oito ruas do bairro serão pavimentadas e 16 vão receber manutenção, incluindo a rua Jundiaí. Os trabalhos já começaram, mas não há data prevista para conclusão. Além da cadeira, Edson vai ter de aguardar também a manutenção.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

O inverno de Sérgio

Não. Eu não sou apenas jornalista. Sou, antes de tudo, humana. E não adianta um professor vir me dizer no primeiro dia de aula que aqueles que acreditam no jornalismo utópico devem desistir do curso ali. Fui até o fim. Fiz os quatro anos de curso mas somente agora, quase três anos depois de formada, percebo o que realmente gosto de fazer.

O homem que deu título a esse texto mexeu comigo como pessoa. Ver o nível de degradação ao qual ele chegou me deixou arrasada, destruída a ponto de chegar na redação com um peso sobre os ombros que nem sei descrever. Ainda mais porque causei uma briga entre ele e a mulher que também aparece no texto simplesmente porque o convenci a aceitar ajuda. Sim, quero jogar limpo com quem ler o texto: eu não fui só jornalista. Fui humana.

O inverno de Sérgio


Uma pequena história sobre um morador de rua de Santo André que aceitou ajuda


Por: Camila Galvez


Foto: Antonio Ledes



- Qual o seu sonho, Sérgio?

- Agora você me fez uma pergunta difícil. Ela diz que está me amando.

- Vem aqui, amore mio!

Sérgio de Azevedo Forato, 48 anos, não sabe mais dizer quais são seus sonhos. Vive com Neide Helena do Carmo, 50 anos, numa praça na avenida Lauro Gomes, em Santo André. Ali os dois dividem um colchão rasgado, dois cobertores coloridos e uma garrafa de plástico cheia de cachaça, que espanta o frio e a fome.

- O álcool acabou com a minha vida.

Sérgio tira do bolso uma folha de sulfite dobrada e envolvida por um plástico. Abre o papel e me entrega sem dizer o que é. Desdobro e leio o que está impresso até o fim para descobrir: ele cumpriu seis anos de detenção por assalto a mão armada. Na época, já bebia. Quando foi solto, chegou a fazer tratamento no A.A. (Alcoólicos Anônimos) de São Caetano. Ficou um ano e oito meses limpo.

- Tinha um trabalho e achei que estava bem o suficiente para tomar uma vodka. Não estava.

Neide se tornou companheira de Sérgio após a morte do marido. A mulher de cabelos crespos despenteados e sem os dentes da frente diz que está na rua desde então. E porque quer.

- Tenho família, mas não vi mais ninguém. E to amando. Quero viver com ele.

Sérgio também tem família. A mãe mora “ali do lado”, e o casal de filhos está bem de vida. Ele, porém, não quer ir para casa.

- Quando chego com o rosto inchado, levando a pinga e o cigarro na mão, minha mãe já sabe. E não me quer.

Mas Sérgio aceitou ir para a Casa Amarela, um local de acolhida para os moradores de rua de Santo André. Ali eles podem se banhar, tomar café da manhã e jantar. A casa é também a porta de entrada para o Programa de Atenção às Pessoas em Situação de Rua, responsável por encaminhar os moradores de rua para outros trabalhos sociais desenvolvidos na cidade. O espaço tem capacidade para atender 100 pessoas por dia. Em Santo André, cerca de 350 pessoas vivem nas ruas, de acordo com o último censo feito pelo Ministério do Desenvolvimento Social, em 2007.

No inverno, que chegou na última segunda-feira (21/06), o trabalho da educadora Nilza Carvalho, uma morena bonita e maquiada, é ampliado. No caso da praça, ela identificou a permanência dos moradores há cerca de 20 dias e, desde então, conversa com eles para tentar convencê-los a ir para a Casa Amarela.

- Precisamos conversar diariamente para criar o vínculo. Eles precisam confiar na gente para aceitar a ajuda.

Sérgio aceitou, e também Rafael, um jovem de 18 anos, mãos sujas e rosto de menino. Ambos entraram na kombi branca que os levaria para o abrigo, onde poderiam tomar banho e jantar. Se quisessem, poderiam ainda passar a noite no albergue da cidade.

Despeço-me de Sérgio no portão da Casa Amarela, e seus olhos parecem curiosos com o que está por vir. Talvez seu inverno seja menos frio agora.

Neide, no entanto, quis ficar. A vida na rua pode ser difícil, mas ela ainda não criou o vínculo necessário para sair dali. Ao menos por enquanto, o trabalho de formiguinha de Nilza continua.

Região oferece 411 vagas em albergues noturnos

As Prefeituras da Região ampliaram o atendimento aos moradores de rua neste inverno. Em Santo André, a pessoa recebe atendimento especializado na Casa Amarela por meio das assistentes sociais, que a ajudam a voltar para a família ou ir para um dos serviços oferecidos pela Prefeitura. No albergue noturno são 80 vagas, sendo 69 masculinas e 11 femininas. Munícipes podem ajudar o trabalho quando identificam locais nos quais há concentração de moradores de rua. Basta ligar para os telefones 4427-6207 ou 8397-9387.

Em São Bernardo há duas entidades de acolhimento para a população adulta em situação de rua: uma casa de integração, que atende 26 homens em fase de reintegração familiar ou autonomização, e um albergue, para atendimento de 100 pessoas em regime diuturno.

Em Diadema, o albergue disponibiliza 40 vagas por noite e o atendimento tem início às 18h30. As vagas podem ser procuradas até as 22h e no local é oferecido banho, pijama, chinelos, jantar e café da manhã. O horário de saída é às 6h30.

Em Ribeirão Pires, a Casa da Acolhida, em Ouro Fino Paulista, tem capacidade para receber até 45 pessoas. No momento, há 39 munícipes em situação de rua na Casa da Acolhida, mantida pela Prefeitura e pela Associação Caminho da Luz.

Em São Caetano, as duas entidades que atendem moradores de rua são privadas. Quando há necessidade de encaminhar alguém, é feito contato para verificar a disponibilidade de abrigar a pessoa. Por esse motivo, a cidade tem atuado na reinserção dos moradores às suas famílias. Mauá e Rio Grande da Serra não responderam a solicitação da reportagem.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Meu querido diário

Demorei, mas voltei! E com boas notícias: a matéria "Pelo direito ao sim" foi manchete do jornal e hoje está como terceira mais lida da editoria de Cidades do site. Ebaaaaaaaa! Minha primeira manchete de Jornalismo Litérario. *.*

Agora deixo com vocês com mais um texto, produzido na última quarta-feira, antes do feriado. Fui muito bem recebida pelo pessoal da E.E. Therezinha Sartori e adorei saber que ainda existe gente que acredita de verdade no poder transformador da educação. Sempre costumo dizer que é preciso investir em escola para diminuir o número de presídios. A matemática é tão simples, mas nossos políticos ainda não conseguiram enxergar que só uma educação de qualidade pode garantir o futuro desse país.

Meu querido diário

Escola estadual de Mauá retoma costume de escrever diários para ensinar língua portuguesa e ajudar crianças e adolescentes a se expressar

Por: Camila Galvez

Bárbara mostra suas joaninhas
Foto: Luciano Vicioni


“Hoje estou um pouco ansiosa. Vai vir um pessoal fazer uma reportagem sobre o Projeto Diário e também estou nervosa por causa da prova de matemática que estava super hiper mega difícil. Ainda bem que tivemos que parar para a entrevista.”

A folha de papel recebeu o texto de letra arredondada, escrito em caneta preta. Duas joaninhas vermelhas de bolinhas pretas e com olhos azuis foram caprichosamente pintadas e coladas na folha para acompanhar as palavras. Os olhos escuros de Bárbara Guedes, 10 anos, correm do papel para a equipe de reportagem que se movimenta na sala de aula do 5º ano do Ensino Fundamental da Escola Estadual Therezinha Sartori, em Mauá. Parecem pedir para que eu converse com ela. A professora me chama a atenção para o texto e para a menina de fala baixa e tímida, que desvia o olhar ao falar.

- Você já tinha feito diários, Bárbara?

- Já tinha escrito três, esse é o quarto. Minha mãe me deu um diário logo que aprendi a escrever.

- Ah, então você já tinha experiência na área. E o que você escreve?

- Escrevo muito o que estou sentindo. E alguns segredos também. Por isso guardo o diário no guarda-roupa e tranco com chave para ninguém ver.

Bárbara é uma entre os 3 mil alunos do 5º ano do Ensino Fundamental até o 3º do Ensino Médio que participam do Projeto Diário na escola. A mãe da ideia é a professora de língua portuguesa Rita de Cássia Fiacadori, que resolveu montar o projeto ao ouvir comentários dos alunos sobre diversos livros que fazem a cabeça dos jovens e que tem estrutura de diário, como O Diário de Bridget Jones, O Diário da Princesa e Diários de Vampiro, que inspirou também um seriado norte-americano transmitido por um canal de TV por assinatura. No projeto, crianças e adolescentes escrevem diários e a professora tem o compromisso de não ler todos os textos.

- Uma vez por semana os estudantes trazem o caderno para a sala de aula e eu dou visto para saber se eles estão realmente escrevendo. Também peço para que escolham um texto que possa ser exposto e passem para a folha de sulfite, que enfeitam a vontade. Nesse texto, faço correções de português, desde a gramática até a estrutura narrativa, e estimulo para que trabalhem diversos conceitos, como prosa, poesia, biografia, entre outros.

Desenhos, pinturas, colagens de fotos e recortes de jornais e revistas são os principais companheiros das palavras. Um estudante, inclusive, chegou a fazer um diário de imagens paralelamente ao projeto escrito. Mas alguns preferem se dedicar mesmo a desenhar as letras no papel, como é o caso de Lucas Medrado, de 12 anos.

“Hoje fui até Mauá e comprei um carrinho que eu tinha que montar a partir das peças que vinham na caixa. Foi meio difícil, demorei uma hora e meia para montar, mas quando consegui foi bem legal. Depois fui até a casa do meu primo, chamamos o irmão dele e começamos a brincar de esconde-esconde. Toda vez que aparecia uma oportunidade eu dava um susto neles e foi muito divertido”

- Escrever o diário é uma coisa diferente. Eu não tinha o hábito de falar sobre as minhas emoções e acho que posso me expressar melhor no papel. Comecei a conversar com o diário como se ele fosse meu amigo. Mas para os amigos de verdade não conto que faço diário, prefiro guardar isso para mim.

Tenho a impressão de que Lucas treinou para me dizer o que disse tamanha é a desenvoltura do menino. Seu diário é um caderninho com o símbolo do Palmeiras na capa, e a letra do garoto é difícil de compreender, mas isso não impede que ele desenvolva textos de qualidade naquele que aprendeu a chamar de companheiro. Lucas é um dos mais elogiados pela professora.

Rita explicou que, no início do trabalho com as turmas, os alunos costumam escrever muito sobre a rotina e pouco sobre o que sentem. Isso muda ao longo do ano, quando começam a encarar o diário como um amigo, processo que aconteceu com Lucas. Alguns falam sobre namoros e amizades, e uma adolescente da escola aprendeu a lidar com o luto escrevendo e fazendo colagens com fotos da mãe que morreu.

- A prática não melhora só a questão do português, mas também das relações sociais. O diário acaba se tornando um bom ouvinte para as crianças e jovens que, muitas vezes, não tem oportunidade de conversar com os pais ou outros amiguinhos sobre seus sentimentos.

A professora de olhos azuis vivos e cabelos claros me lembra ainda que o diário é também uma gostosa lembrança para o futuro. Que o diga essa repórter, que escreveu uns oito ou nove diários dos 9 aos 18 anos, e ainda guarda todos no fundo do armário para a mãe não ler.

Escola trabalha interdisciplinaridade na educação

A Escola Estadual Therezinha Sartori é um exemplo de como uma gestão firme e criativa pode mudar a educação pública. É possível perceber no rosto da diretora Rita de Fátima Sola o quanto ela acredita que a escola é transformadora. Suas mãos delicadas e cheias de anéis grandes não parecem tão fortes se olhadas de perto, mas se tornam de ferro quando observamos o trabalho desenvolvido na escola, que existe há 50 anos na Vila Noemia.

- Não é porque a escola é pública que o ensino deve ser uma porcaria. Aqui temos a cultura de resgatar o passado, não só por meio do Projeto Diário, mas também realizando gincanas com brinquedos antigos, exposições de trabalhos permanentes, murais, e outras atividades que retomem a infância que muitas crianças e adolescentes perderam com a vida moderna.

Nem todos gostam desse modelo, é fato, e nem todos participam tão ativamente quanto Rita gostaria. Mas ela insiste porque acredita que muitos pais perderam a conexão com os filhos e os jovens têm necessidade de que a escola aja para ensinar valores e moral.

A coordenadora pedagógica Mirian Marcondes Carvalho destacou ainda que a instituição trabalha a interdisciplinaridade, ou seja, não divide projetos e atividades por matérias, mas trabalha todas em conjunto. O conceito é bastante aplicado em avaliações da educação, como o Saresp (Sistema de Avaliação e Rendimento Escolar do Estado de São Paulo) no nível estadual e o próprio Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), que neste ano foi a única forma de ingresso de estudantes nas universidades federais do país.

- Apesar do Projeto Diário ser focado no português, outras disciplinas se aproveitam dele para trabalhar conceitos como psicologia, sociedade, antropologia, filosofia. A leitura e a escrita são os únicos meios de transformar a educação brasileira. Aqui acreditamos nisso.