sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Seu Carlos e o sonho de Brasília

Texto gostoso e curtinho sobre um casal de idosos muitoooo simpático que vive em Santo André.

Seu Carlos e o sonho de Brasília


Camila Galvez 

Carlos Gonçalves jura que tem 87 anos, mas Lilia Loureiro Gonçalves, 83, diz que o marido só vai completar essa idade em agosto do ano que vem. Na quarta-feira, o casal de Santo André comemorou outra data especial: 54 anos de casados. O presente que seu Carlos gostaria de dar à mulher e companheira de uma vida depende, porém, da presidente Dilma Rousseff. Ele quer levar dona Lilia à Brasília. E mandou carta para a presidente pedindo passagem e um cicerone para guiar o casal pela capital brasileira.

"Mas não quero ir não. Fazer o quê lá", diz a voluntariosa senhora de óculos de aro transparente. Dona Lilia está sentada ao lado do marido no sofá cheio de enfeites de crochê que ela mesma faz, os braços cruzados sobre o peito. "Ah, mas eu convenço ela, viu?", garante seu Carlos, sem parar de tentar abraçar aquela que chama de "lasquinha de ouro". "A gente se atura", brinca dona Lilia.

O casal vive em um sobrado no Centro de Santo André há sete anos, mas desde 1957, quando se casaram, moram na cidade. Foi nela que criaram seus quatro filhos: Lílian, do primeiro casamento de dona Lilia, mas criada por seu Carlos, Levi, Lóide e Lídia. Todos com a letra L. "Eu quis assim e obriguei ele a registrar", diverte-se dona Lilia. Seu Carlos apenas balança a cabeça em sinal de aprovação e completa: "Mas eu também gostei."

Seu Carlos quer conhecer Brasília e tirar fotos ao lado da mulher com a obra de Oscar Niemeyer ao fundo. Porém, o motivo da viagem não é apenas turístico. Em Brasília, ele quer conhecer também o funcionamento dos Três Poderes. Isso porque o corretor de imóveis, que aos 87 - ou 86 - continua vendendo imóveis, gosta de política. Foi candidato a vereador do município pelo Partido Socialista Brasileiro em três ocasiões. "Não cheguei a ser eleito, mas sempre acompanhei a política da minha cidade e do meu País."

O senhor de cabelos brancos e óculos de aro preto lembra da época da ditadura, em que fugia do Departamento de Ordem Política e Social, o Dops, por defender o socialismo. "Acho que político que rouba deveria pagar com prisão perpétua."

RELIGIÃO

Seu Carlos é um socialista incomum. Apesar de defender as ideias de Karl Marx e Friedrich Engels, é religioso. Conheceu dona Lilia na igreja que ambos frequentam até hoje, a Presbiteriana. "Esse é o segredo de estarmos juntos: Deus e a religião", garante.

Dona Lilia participa ativamente das atividades da igreja e canta no coral. Os filhos e os dez netos também são evangélicos. "Foi Deus quem me deu força para enfrentar os desafios da vida. Não fiquei rico, mas consegui criar minha família."

O celular de seu Carlos não para de tocar. Ativo, trabalha diariamente das 10h às 16h e ainda encontra tempo para escrever seus textos no computador. Guarda na garagem o carro que não é Brasília, mas sim um Fusca 1976, para quando puder voltar a dirigir. "Preciso antes operar a catarata."

O simpático senhor de sorriso fácil garante que só vai embora desta vida em 2036. "Quero acompanhar a Copa e os Jogos Olímpicos no Brasil, no mínimo. Acho que chego lá". Se depender da alegria e da vontade de viver de seu Carlos, os planos estão garantidos.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

O menino que morreu de dor de ouvido

Olá, pessoal, como estão todos? Algumas decepções me fizeram deixar de lado por um tempo esse espaço. Mas como a vida tem de seguir, e a minha paixão pelo que faço também, vou tentar retomar aos poucos as matérias que realmente valem a pena, as histórias que precisam ser contadas.

Hoje deixo para vocês um caso revoltante, de cortar o coração. Admiro a família, que não se calou diante do que aconteceu, mas que teve a coragem de dividir sua história com outras pessoas como uma forma de alerta. Aguardo opiniões sobre o assunto.

O menino que morreu de dor de ouvido


Pedro Henrique gostava de animais, política e previsão do tempo. Aos 10 anos, ele deixou a vida após complicações ocasionadas por uma otite


Camila Galvez
Fotos: Denis Maciel/Dgabc

“Mãe, eu to cansado”. Os olhos de Pedro Henrique Conceição Alves Pessoa, 10 anos, estavam fundos, sem brilho. A mãe do menino, Rosimeire da Conceição, 39, pedia, com o coração apertado: “Filho, você tem que reagir”. Ele não sentia vontade de comer. O garoto antes tranquilo, de sorriso tímido e bochechas fofinhas, que adorava animais e sonhava em ser prefeito de Indaiatuba, parecia mais velho e fraco. Estava internado há uma semana. Já havia passado por quatro hospitais. Passaria por mais um antes do diagnóstico final: trombose venosa e isquemia cerebral extensa, como complicação rara e gravíssima de otite. “Meu filho morreu porque ninguém tratou a dor de ouvido.”

A triste história de Pedro Henrique, que deixou a vida no último domingo, começou há cerca de seis meses, quando o menino chegou em casa reclamando de dor no ouvido direito. A mãe levou o filho à Unidade Básica de Saúde do Jardim Zaíra, onde vive a família, numa casa modesta. Lá, o médico receitou Amoxilina, um dos antibióticos mais comuns para tratamento de diversas infecções.

Passaram-se 15 dias e Pedro Henrique parecia bem. Voltou a brincar, foi à escola, fez festa para o cãozinho Cadu e bateu palmas para o Louro, o papagaio que só deixava o menino chegar perto, e mais ninguém. Consultou a previsão do tempo pela Internet, como gostava de fazer, e contou para todos que faria sol e calor. Ele enfrentaria a tempestade sozinho.

A dor de ouvido voltou forte alguns dias mais tarde. O pai de Pedro Henrique, o técnico em telefonia Antônio Alves Pessoa, 45, tem convênio empresarial da Intermédica e a família resolveu levar o filho no hospital Cema, na Capital, especializado em Otorrinolaringologia (garganta e ouvido). “Lá me disseram que era uma infecção normal, coisa de criança, e vieram com amoxilina de novo.”

Ao longo de seis meses, Pedro Henrique cansou de passar por consultas em diversos hospitais e clínicas do convênio. Foram 11 no total, e nenhum médico pediu exames detalhados para tentar descobrir porquê a infecção de ouvido não melhorava. Tampouco trocaram a amoxilina por um antibiótico mais forte. Enquanto isso, o menino não queria ir para a escola. “Ele tinha vergonha porque saia pus e sangue do ouvidinho, além da dor.”

PNEUMONIA
Domingo, 16 de outubro. Enquanto as crianças do Zaíra aproveitavam o dia de sol para brincar na rua, Pedro Henrique ardia em febre e vomitava tudo o que comia ou bebia. Sua boca se encheu de feridas e ele não queria sair da cama. No desespero, a família, que é católica, levou o menino à Igreja Evangélica. “Achamos que poderiam fazer algo por ele, ter fé nunca é demais”, disse a tia do garoto, a vendedora Maria do Carmo Conceição, 44.

A fé, porém, não foi suficiente. Na segunda-feira, Pedro Henrique acordou pior. Não quis entrar no computador para ver a previsão do tempo, como fazia sempre. Não ligou para o Cadu, que balançava o rabo querendo brincar. Antonio precisou carregá-lo no colo para a Santa Casa de Mauá. Só ali, ao ver o estado do menino, pediram exames de urina, sangue, raio-X do abdômen e pulmão. Pedro Henrique estava com pneumonia.

A seguir, a família viveria uma sucessão de fatos que classifica como negligência e erro médico. Mãe, pai e tios tem certeza que a morte de Pedro Henrique poderia ter sido evitada. “O Pedro Henrique era meu tesouro. Ele não gostava, ficava bravo quando eu chamava ele de tesouro. Agora sei que é isso mesmo. O nosso tesouro se foi”, lamentou o motorista de ônibus Arnaldo Alves Pessoa, 35, tio do garoto.

TRANSFERÊNCIAS
Da Santa Casa de Mauá, Pedro Henrique foi transferido para o Hospital São Bernardo. “Demorou duas horas para a ambulância chegar, e meu filho vomitando sem parar.”

Quando chegou ao hospital, os médicos avaliaram que o menino precisava ser internado imediatamente na Unidade de Terapia Intensiva. A Intermédica, porém, não cobria o tratamento ali, apenas a parte de pronto-socorro. Ele teve de ser transferido mais uma vez.

Foi parar no Hospital e Maternidade Sacrecoeur, na Capital, mas ali ficou num quarto. “Deram soro e mais antibiótico. E o médico avisou que estavam aguardando vaga na UTI”, explicou a mãe.

A UTI, porém, não era naquele hospital, mas sim no Renascença, em Osasco, há 51 quilômetros de onde a família vive. Porém, Rosimeire só se deu conta disso, quando, às 21h, foi avisada por uma enfermeira de que o filho aguardava nova transferência. Desesperada, aos prantos, a mãe ligou para a irmã, Maria do Carmo, que fez um escândalo com o convênio. “Falei que ia chamar a polícia. A ambulância chegou em 15 minutos.”

Ao chegar ao hospital de Osasco, porém, o menino não foi direto para a UTI, como a família queria. Colocaram-no mais uma vez num quarto, onde ficou até o dia 22 de outubro. Ali foi constatado que seu sistema imunológico estava em frangalhos. Ali, ele se despediria dia a dia dos pais e familiares.

“Mãe, me perdoa por tudo o que eu fiz. Eu te amo tanto.”
“Não pede perdão, meu anjo. Reage.”

COMA
No Hospital Renascença, Pedro Henrique sentia fortes dores na cabeça, próximo ao ouvido infeccionado. “Ele reclamava muito todas as vezes que mexia o pescoço”, lembrou a tia.

Os médicos suspeitaram então de meningite, mas disseram a Rosimeire que não fariam o exame por conta das condições do menino. “Mas ele reclamou de dor para uma médica plantonista e ela decidiu colher o líquido da medula.”

A cena ficará marcada para sempre na mente e no coração da mãe. Os médicos pediram para que ela se retirasse. Do lado de fora do quarto, ela ouviu o grito do filho chamando por seu nome. Ela entrou e disse que o amava. “Os olhinhos dele reviraram. E ali eu perdi meu menino.”

Em coma, Pedro Henrique seria ainda transferido mais uma vez para o Hospital Santa Cecília, ainda na Capital. Ali, a família não tem do que reclamar do tratamento. “Ele chegou tarde demais, esse foi o problema”, disse o pai.

No último domingo, antes de desligar os aparelhos, a família decidiu doar os órgãos do menino, que ajudaram a salvar a vida de seis ou sete pessoas. Rosimeire só tem vontade de conhecer uma delas: aquela que recebeu as córneas do filho. “Quero poder olhar mais uma vez nos olhos dele. Só mais uma vez.”

A família segue a vida. No quarto verde de cortinas vermelhas, a irmã de Pedro Henrique, Letícia, 13, não quer mais dormir. As roupas do menino foram ensacadas para doação. Só sobrou um boneco do Ben 10. As gatas que ele chamava de filhas deram cria. Quatro gatinhos sobreviveram. A família não vai doar nenhum. “São os netos do meu filho. Vou cuidar deles como ele cuidaria. Como meu anjo cuidou de mim.”



Família entra na Justiça por erro médico
A família de Pedro Henrique Conceição Alves Pessoa, 10 anos, entrará na Justiça contra o convênio e os hospitais que atenderam o menino. A advogadaSandra Regina Tonelli Ribeiro está à frente do caso. “É cedo para apontar um culpado, mas parece que se trata de uma sucessão de erros e casos de negligência”, apontou.

A advogada afirmou que dará entrada em ação de responsabilidade civil por erro médico, com o objetivo de chamar a atenção da Justiça para o despreparo de alguns profissionais da área. “Não há provas ou exames para que os médicos exerçam a profissão, como existe, por exemplo, para o advogado. A diferença é que se há erro, perdemos um caso. Os médicos perdem vidas.”

A Intermédica foi procurada para esclarecer os procedimentos adotados no tratamento de Pedro Henrique. O convênio enviou a seguinte nota:

O paciente Pedro Henrique era portador de infecção crônica do ouvido e foi tratado 11 vezes no último ano.


Em 17 de outubro procurou o Hospital em Mauá, onde foi constatada pneumonia e otite.


Encaminhado ao hospital São Bernardo, após reavaliação julgou-se importante transferência para São Paulo.


Evoluiu com piora do quadro até que em 23 de outubro, em uma segunda tomografia realizada, mostrou tratar-se de trombose venosa e isquemia cerebral extensa, como complicação rara e gravíssima de otite.


Todas as transferências foram feitas com intuito de melhor atender ao menor na sua doença. Infelizmente o problema era tão grave que apesar dos esforços de vários especialistas a criança foi a óbito em 30 de outubro.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Casamento sem valsa? Sim!

E para as noivinhas de plantão, um texto inédito. Enjoy it!

Casamento sem valsa? Sim!

Casais deixam a tradição de lado e ensaiam coreografias de tango, samba de gafieira, salsa e até rock

Por: Camila Galvez


A jovem de vestido e luvas brancas desliza de um lado para o outro do salão, indiferente ao apelo do homem que a segue. Ele segura uma bengala e usa cartola, terno e gravata. Quando a voz de Frank Sinatra ecoa os primeiros versos de I’ve got you under my skin, ela se rende ao charme do galã e aceita dançar um soltinho com ele.

Mas não estamos na década de 1950, e sim em 2010, no casamento de Thiago e Betsaida Bittencourt, 27 e 26 anos, respectivamente. O casal abriu mão de dançar a tradicional valsa para surpreender os parentes e amigos com a coreografia ensaiada por quatro meses em uma escola de dança de São Bernardo do Campo, no ABC Paulista.

Aprender os passos foi difícil e exigiu muito esforço, principalmente de Thiago. “Nunca tive jeito pra dança, achava que não ia conseguir. Me surpreendi”, disse.

A ideia partiu do casal, que queria algo diferente do convencional para marcar um dos momentos mais importantes de suas vidas. Mas a escolha não é exclusiva de Thiago e Betsaida: segundo o professor de dança Rodrigo Piano, muitos casais optam por fazer aulas de dança para o grande dia.

“O ritmo escolhido depende muito do gosto e da idade do casal”, detalhou. Conforme Piano, os mais jovens querem ritmos mais animados, e se arriscam no tango e na salsa. Os mais velhos optam por boleros ou mesmo pela valsa “de verdade”. “A tradição ainda existe e já treinamos alunos que queriam aprender os passos de valsa para fazer bonito na hora de dançar para a família”, destacou.

CALIENTE
Adriana e Erick Del Pino já tinham experiência no assunto: conheceram-se em uma escola de dança de Santo André. O ritmo preferido do casal sempre foi o zouk, mas na hora de escolher uma música para dançar no casamento, surpreenderam e optaram pela salsa.

Os padrinhos também caíram na dança. “Mas para eles, tocamos um forró, porque não deu para obrigar todo mundo a aprender salsa, né?”, disse Adriana.

A coreografia foi montada com base no instrumental da música Do You Wanna Dance, do filme Dirty Dancing 2 – Noites de Havana. Apesar de fazer aulas há cinco anos, Erick sentiu dificuldades com os passos do ritmo caliente. “Foi mais complicado do que estávamos habituados, mas valeu a pena pela cara dos convidados”, garantiu.

VESTIDO
Não há dúvidas de que dançar algo diferente da valsa no casamento é uma bela surpresa para familiares e amigos, mas é preciso tomar alguns cuidados no momento de escolher o tão sonhado vestido de noiva.

Betsaida admitiu que o vestido pesou na hora. “Tive medo de enroscar a saia e estragar a dança. Tanto que, na última semana, ensaiei com um saiote rodado para sentir como seria”, afirmou.

Adriana bem que tentou escolher um vestido que estivesse de acordo com a coreografia da salsa. “Na hora H eu me rendi e escolhi um pesadão”, relembrou. A saia enroscou no pé do noivo no momento da dança. “Mas a gente disfarçou e acho que ninguém percebeu”, garantiu o marido.

A professora de dança de salão Karina Saba explicou que algumas noivas optam por usar uma roupa que remeta à música que vão dançar. “É o mais indicado para que os noivos se sintam a vontade no momento da apresentação”, disse.

Segundo Karina, aquelas que querem ficar com o vestido de noiva precisam adaptar os passos da coreografia. “Num tango, por exemplo, não é possível entrelaçar as pernas, um passo característico da dança. Mas se é o sonho da noiva, a gente faz a adaptação”, disse.

E se o sonho da noiva é arrasar na pista de dança, o investimento vale – e muito – a pena.

terça-feira, 7 de junho de 2011

O menino da Lina

Olá, pessoas, tudo bem?
Estou para postar esse texto faz tempooo. É meu segundo trabalho da pós na ABJL e achei que ficou satisfatório. Tirei um 9 com ele mas, acima de tudo, me diverti muito ao passar esse delicioso domingo com Américo e Lina Del Corto. Conheçam um pouco mais desse simpático casal ribeirãopirense.

O menino da Lina
 Texto e fotos por Camila Galvez


Oleiro motorista de caminhão músico fotógrafo relojoeiro poeta escritor colecionador compositor dançarino filho pai marido avô ribeiraopirense. Ah! Radialista.

“Nove horas e sete minutos em Ribeirão Pires, nosso horário oficial de Brasília dentro do horário brasileiro de verão. E agora a rádio Pérolas da Serra adentra sua casa sem pedir licença para apresentar o Programa Reminiscências. Hoje, além da nossa equipe, temos uma visita muito especial, mas vou deixar que ela cumprimente os ouvintes por último porque...”

Tavinho interrompe.

“Os últimos serão os primeiros!”

Aos 89 anos, Américo Del Corto fica à vontade diante do microfone. Veste bermuda caqui estilo jovem surfista e camiseta verde onde se lê Programa Reminiscências, Rádio Pérolas da Serra, Ribeirão Pires. O letreiro que avisa quando estamos no ar está apagado. Poderíamos conversar, mas ninguém fala em sinal de respeito à música que toca.

Ribeirão Pires cidade serrana
Acolhedora, saudável, humana
Deste Brasil pequenina fração
Mas muito grande no meu coração
Com tua névoa e frio garoar
Ou então com o sol a brilhar
Ribeirão Pires cidade serrana
O teu povo de ti se ufana.
Berço de bravos imigrantes
Que de suas pátrias distantes
Um dia partiram a buscar
Nova vida no além-mar
Teu nome é Ribeirão Pires
Homenagem à família Pires
Pioneiros desta região
Às margens do ribeirão


Após ouvir o hino de Ribeirão, letra e música do compositor Américo, o letreiro vermelho se acende e cada integrante do programa cumprimenta os ouvintes, inclusive a visita especial – no caso, eu.

Então vem a leitura da Máxima do Dia, texto de autoria de seu Américo sobre como os jovens recebem más influências da TV e Internet e deixam de valorizar a cultura do lugar onde vivem. “Os jovens estão deixando o passado da cidade se perder”.

Toda a história desse senhor de olhos claros e sorriso fácil teve um só objetivo: manter Ribeirão Pires viva.

O letreiro vermelho se apaga quando a música Eterna Saudade, instrumental executado pela Banda da Força Pública do Estado de São Paulo, começa a tocar. Sinal que podemos conversar sem que o ouvinte nos ouça, como um pequeno segredo contado ao pé do ouvido.

“Filha, da última vez que nos encontramos mudou uma coisinha”.

“O que foi, seu Américo?”

“Agora você tem que gritar porque eu to surdo!”

O sotaque é típico do filho de imigrantes italiano. Os dentes meio amarelados pelo tempo se mostram no sorriso de sabedoria de quem viu os anos correrem e sabe que perder parte da audição pode não ser algo tão incapacitante assim. Sua risada não vem sozinha: todos naquele estúdio, exceto eu, passaram dos 80 e, assim como seu Américo, entendem que a vida é um rio que corre mesmo que tentemos alterar seu curso.

Além de Américo Del Corto, apresentam o Programa ReminiscênciasOctávio David Filho, o Tavinho, Idair Ferreira dos Santos, o Didi, e Lina Del Corto, esposa de seu Américo. A única mulher a me abrir as portas do passado de acordeon e bailes e vestidos de cintura marcada e cumprimento no tornozelo me entrega, escondido do marido, um bilhetinho escrito em esferográfica preta e letra arredondada.

“O apelido dele é menino da Lina”.

Seus olhos brilham quando os lábios coloridos pelo batom vermelho esboçam um sorriso de confidente.

Eterna saudade
Antes de se tornar o menino da Lina, Américo foi menino travesso que não queria ir para a escola. O motivo: morria de medo do bicho de saia, ou seja, de mulher. Fora a mãe, não podia nem pensar em chegar perto das donzelas de saias no joelho.

“Eu só queria saber de bola e de olaria. Adorava fazer tijolos de barro na olaria do meu pai. Naquela época, a economia de Ribeirão Pires era basicamente esse tipo de produção artesanal”.

Nas décadas de 1940 e 1950, a cidade chegou a contar 1,2,3... 300 olarias. A dos Del Corto ficava no que hoje é a Vila Fiorentina, e extraía a argila necessária para fabricação dos tijolos de um terreno em frente ao então cemitério da cidade. Hoje o que se vê ali são apenas galpões e indústrias. Da olaria nada restou.

Mas o menino Américo se lembra bem do seu tempo de oleiro e de fujão. Quando chegou aos sete anos, agentes da prefeitura de Santo André, cidade a qual o território ribeirãopirense pertencia na época, vieram à sua casa indicar aos pais que o matriculassem na escola mais próxima. “Eu fugi e me escondi debaixo da cama. Fiz isso por dois anos”.

O pai de seu Américo, Pedro Del Corto, que não era de bater ou dar broncas nos dez filhos que teve, usou um método muito mais eficaz: tirou qualquer regalia do menino e não o deixava mais sair de casa para ajudar na olaria. Além disso, tudo o que Américo pedia era negado: nem mesmo uma balinha ele podia comprar. “Chegou uma hora que eu cansei, né? Mas ainda tinha o problema do bicho de saia”.

Américo não podia ver mulher que saia correndo e chorando para o colo da mãe, dona Luzia Zanetti Del Corto. Ele não sabe explicar o porquê, mas dá risada quando se recorda dessa época. “Dei muita sorte porque quando cheguei para as aulas, o professor era homem!”

À gargalhada boa se misturam os últimos acordes de Aqueles Tempos, de Joelma. A luz vermelha do letreiro acende e estamos de novo no ar. A voz rouca de seu Américo ressoa pelo estúdio. “Agora ouvintes, a charada do dia. Quem sabe qual é o cúmulo da vaca? Você sabe, Tavinho?”

“Olha, eu não sei não, seu Américo, mas se o ouvinte souber, é só ligar pra cá que vamos dar brinde pra quem acertar, hein!”

“Olha, eu também não sei qual é o cúmulo da vaca, mas uma vez, ouvintes, fui passar férias em um sítio na cidade de Cedral. A gente levantava às 5h da manhã porque o homem não deixava dormir mais que isso. Ia lá no curral com o copo na mão e ele falava ‘tira o leite da vaquinha’. A primeira vez eu respondi ‘mas isso eu não faço, ela vai me dar um coice’. Ele insistiu, perdi o medo e coloquei o copo lá. Foi a primeira vez que experimentei o leite de vaca quentinho e com um tiquinho de conhaque, Tavinho”.

“Eu bem que sei, seu Américo, ainda saia o leite espumante, né? Direto do produtor para o consumidor”.

“Então a gente quer saber do ouvinte qual é o cúmulo da vaca!”

Aqueles tempos
A profissão de radialista chegou meio que sem querer à vida de seu Américo, mas era sonho antigo do homem que não consegue ficar parado. “Na juventude tentei montar uma rádio junto com um jornalista, mas infelizmente não deu certo”.

O sonho não morreu e, anos mais tarde, dois conhecidos de seu Américo compraram os aparelhos de uma rádio falida da cidade. “Eles colocaram a Pérolas da Serra pra funcionar e me chamaram para fazer uma entrevista. Então falaram volta amanhã, volta amanhã, e to voltando há quase oito anos”.

O amor pelo rádio só não ganha do amor pela música. Seu Américo fundou a primeira escola de música de Ribeirão Pires em 1953. Ensinava meninos a correr os dedos pelo acordeon e produzir a música que animava os bailinhos da cidade.

Na época forte do instrumento, a escola chegou a ter 90 alunos. Começou a perder espaço quando, nos anos 1970, a guitarra deu um chega pra lá no acordeon e tomou seu espaço como instrumento queridinho da juventude. “Os meninos começaram a gostar de rock and roll, o acordeon ficou nas minhas lembranças”.

Enquanto ensinava acordeon, o músico também tocava na banda da cidade, a Corporação Musical Lira de Ribeirão Pires.

“Acordeon, seu Américo?”

“Nada! Meu instrumento sempre foi o clarinete”.

Anos depois de fechar a escola e deixar a banda, a música continua a fazer parte da vida de seu Américo. Depois de apresentar o programa e antes do arroz com frango e coca-cola na casa da avenida Francisco Monteiro, o rádio toca alto na Pérolas da Serra. O programa é de forró. Na casa de seu Américo, é difícil não ouvir uma melodia, nem que seja o som suave de um mero assobio.

O presente de um poeta
Seu Américo vive na mesma casa desde que tinha um ano. Ele se recorda do barulho dos carros de leite puxados por bois com sinos no pescoço – blem, blem, blem -, e dos homens que vendiam bananas de porta em porta – Olha a banana!

Os anos passaram e o som de cidade interiorana foi substituído pelo barulho dos automóveis e ônibus – vrum, vrum, vrummmm - que percorrem o asfalto quente de uma das principais avenidas de Ribeirão Pires. A mangueira do lava-rápido deixa os automóveis limpinhos e cheirosos – tchaaaaaa – e o supermercado ao lado vende tudo o que você precisa, desde que tenha dinheiro para pagar – trim, trim, trim.

Mas da porta do número 1.244 para dentro, o visitante sente como se voltasse para a Ribeirão Pires de antigamente. Seu Américo guarda muito do passado não apenas em suas memórias, mas também em sua própria casa, que transformou em museu. Canecas, lápis, jornais, caixas de fósforo, moedas e notas, fotos, poemas e até mesmo um exemplar do curso de português por correspondência que fez após a conclusão do antigo ginásio. Tudo remete ao passado que ele faz questão de reviver diariamente.

Descansando em uma das prateleiras de madeira há também algo que seu Américo guarda com carinho de criador. Todos que visitam aquela casa saem de lá com a dedicatória. Eu tenho a minha.

“À grande amiga e repórter, Camila Galvez. Ribeirão Pires, 31/03/2010. Com carinho, o autor Américo Del Corto”.

As páginas do livro Reminiscências: Ribeirão Pires que vi e vivi são fáceis de ser vencidas. De narrativa leve, solta e mais preocupada em registrar as histórias que trazê-las em português estritamente correto, o livro é o projeto de vida de Seu Américo. “Comecei a fazer minhas memórias quando ganhei minha primeira máquina de escrever, lá pelos idos de 1963”, conta.

Só 43 anos depois as páginas metade datilografadas, metade digitadas no computador, se tornariam o livro do qual seu Américo tanto se orgulha. Em 2006, o sonho virou realidade, com direito à noite de autógrafos e dois mil exemplares distribuídos aos moradores da cidade.

Nas paredes do imóvel está também um singelo poeminha, feito à mão em letra comprida e cartolina branca.

À minha mulher Lina
O presente de um poeta

Muitos anos se passaram
E nós envelhecemos
Há 47 anos juntos permanecemos
Enfrentando todas as agruras
Da distância já percorrida,
De um sinuoso roteiro,
Na estrada longa da vida
Hoje, dia de seu aniversário,
Eu lhe dou como presente
Um abraço bem apertado
E o meu amor permanente.
12/10/2004


A cumplicidade e o amor entre o menino Américo e dona Lina completam, em 2011, 54 anos.

- Mulher é problema ruim e problema bom pra gente.

- Américo!

- Mas é verdade. Só que hoje não faço mais nada sem ela. Até pra rádio eu levei, e olha que ela morria de vergonha. Hoje está lá, e apresenta muito bem.

- É, isso é verdade...

Os olhos de dona Lina encontram os de seu Américo, e é como se o casal voltasse aos tempos do bailinho em que se conheceram.

- Ela nem foi convidada.

- Mas eu vim com uma amiga que te conhecia, Américo! E você foi lá me tirar para dançar!

- Claro, a gente vê uma mulher sozinha na pista, fiquei com dó.

Dona Lina mexe a cabeça de um lado para o outro e serve mais frango ao marido. Ele continua sendo o menino da Lina. Sempre.

- E ela não pode nem reclamar quando faço uma travessura. Afinal, sou uma eterna criança.

Nosso tempo
Conheci seu Américo ao mesmo tempo em que descobria a história de Ribeirão.

“Quem é aquele velhinho em cima do palco? Cadê o fotógrafo? O prefeito chegou! Quero terminar logo, tem mais três matérias pra fazer hoje. Olha só que cabelo branquinho e ralo... Hino de Ribeirão Pires? Nem sabia que existia, legal! Ah, esse é o autor! Nossa, vou lá pegar o telefone dele, rende matéria pra outro dia. Quantas escolas tem nesse desfile mesmo?”

Subo na estrutura improvisada sob o teto da antiga rodoviária, desativada depois que a nova – e muito mais colorida – foi erguida perto da estação de trem, tombada pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). É dia 19 de março, aniversário de Ribeirão Pires.

Até então sabia pouco sobre a história da cidade que foi usada como passagem obrigatória para quem vinha de Santos e pretendia chegar aos campos de Piratininga (em tupi, “peixe seco”).

Aprendi no desfile e em pesquisas que, a partir de 1558, o território que hoje é chamado de Ribeirão Pires foi incorporado a São Paulo de Piratininga, mas ainda era pouco ocupado naqueles tempos. Isso começou a mudar com a invasão das terras da Aldeia do Ururaí, depois São Miguel, quando muitas pessoas se espalharam por ali, alcançando a região de Ribeirão Pires no fim do século XV.

A área chamava-se então Caaguaçu, que para os índios significa mata grande, e no século XVII voltaria a ampliar seu processo de povoamento. O motivo: a ganância dos homens durante a fase de exploração das minas de ouro.

Caaguaçu, que estava no caminho para essas minas, passou a ser conhecida, pois até então era quase inexplorada. Houve a formação de um núcleo de povoamento na região, mas apenas a partir de 1714, com a construção da Igreja Nossa Senhora do Pilar, o povoamento de Ribeirão Pires se intensificou pra valer. Hoje a capela é patrimônio tombado pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico), do Governo do Estado.

Durante o século XIX, o café precisava de meios de transporte, e trouxe consigo a ferrovia para ligar as áreas produtoras ao Porto de Santos. A estação de Ribeirão Pires foi inaugurada em 1885 e, sobre seus trilhos, levas e levas de imigrantes italianos chegaram ao território, com suas massas e seus Mamma Mia! na bagagem. Apenas em 1953, Ribeirão Pires, então com 15 mil habitantes, inclusive seu Américo e dona Lina, foi emancipada de Santo André.

“E aqui nós vamos pondo um ponto final em nosso Reminiscências de hoje, que levou até vocês as músicas do nosso passado. E prometemos voltar no próximo domingo, sempre das nove ao meio dia. Agradecemos a todos pela audiência: continue telefonando, escrevendo e pedindo suas músicas preferidas, pois assim podemos fazer sempre o melhor para vocês. Um bom dia para todos e tenham um final de domingo feliz ao lado de seus familiares com muita paz e compreensão. Esses são os votos de todos nós!”

Tavinho, Didi, dona Lina e eu deixamos nossa despedida aos ouvintes enquanto seu Américo aguarda pelo grand finale. Ele sorri de um modo travesso, e não entendo o porquê até chegar o momento.

“Então, com tudo isso, Américo Del Corto lhes diz MUITO BOM DIA, RIBEIRÃO PIRES!”

A frase é dita em alto e bom som por todos, menos eu, claro, que até me assustei com o animado encerramento.

Mas peraí! Não dá para deixar você, leitor, sem saber: afinal qual era o cúmulo da vaca? “Dar leite em pó, vê se pode”.

Vinte e oito ouvintes ligaram e acertaram, e dois deles foram sorteados para ganhar o prêmio especial de Natal: um relógio de parede com desenho de – claro – vacas.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

A vida pela metade

A situação dessas famílias é das piores que já vi nos meus quatro anos trabalhando no ABC. Elas, literalmente, sobrevivem num prédio abandonado em Mauá, só Deus sabe como. É triste de ver. Mas muita gente fecha os olhos para isso em nome do dinheiro.

A vida pela metade

Prédios inacabados no Jardim Kennedy, em Mauá, também são invadidos

Por: Camila Galvez



Fotos: Orlando Filho

Ivone Santos Pereira tem 32 anos e quatro filhos. Mas não tem uma casa. Ela e mais 40 famílias invadiram um conjunto de sete prédios inacabados no topo de um morro no Jardim Kennedy, em Mauá. É a segunda invasão de unidades habitacionais inacabadas no bairro neste ano.

Ali, homens, mulheres e crianças sobrevivem há dois meses carregando baldes de água da rua. Tomam banho de canequinha. A geladeira de Ivone está desligada, pois não há energia elétrica. Para as necessidades fisiológicas, baldes e sacos de plástico servem de vaso sanitário.

Valéria Pedra, 31, é vizinha de Ivone. Mora no terceiro andar do prédio que deveria ter ao menos cinco. Para chegar ao apartamento de quatro cômodos que transformou em lar, improvisou uma escada de madeira. A de concreto, que daria acesso aos andares mais altos, não foi concluída antes das obras serem embargadas, em fevereiro de 2009.

É por essa escada de madeira que Valéria e seus filhos conseguem entrar em casa. Por ela sobe também o aposentado João Teixeira de Oliveira, 69 anos, operado do intestino, com pressão alta e gota. "Ás vezes meu joelho dói tanto que tenho que descansar um pouco entre um degrau e outro".

Para chegar ao quarto andar, é preciso escalar as paredes. As crianças sobem com facilidade. Já os adultos são mais cautelosos, afinal, a queda seria fatal. O quinto andar do prédio não pode ser habitado, pois não há cobertura.

Das janelas improvisadas com madeirite, Ivone, Valéria e seu João vêem a outra invasão, na parte de baixo do morro. São 42 imóveis ocupados desde o início deste ano por famílias que vieram de áreas de risco da cidade. As casas são alvo de reintegração de posse. As famílias, com suas 150 crianças, ficarão sem um teto a partir do dia 15 de junho.

FUTURO
Já o destino das que estão nos prédios é incerto. O motorista Luiz Pereira, 46, vive em uma das seis unidades que tem apenas dois andares. De cima do morro, avista a área onde ficava seu barraco. Há três anos, ele e a esposa Maria de Jesus Ferreira, 52, foram removidos depois que o chão da casa de madeira afundou.

"Na época nos prometeram bolsa aluguel. Pagaram por três meses. Depois, fiquei por mim mesmo". A área de risco foi ocupada por outras famílias, que ergueram novamente seus barracos à espera da próxima chuva.

As famílias não sabem dizer quem são os donos dos prédios da parte de cima do morro, que estava abandonado e servia de abrigo para usuários de droga e criminosos, assim como as casas da parte de baixo do morro.

ESPERA
Mas a Prefeitura sabe: a construção dos prédios foi barrada após o TCE (Tribunal de Contas do Estado) constatar irregularidades na licitação.

As 64 unidades habitacionais que deveriam ser erguidas ali são para famílias como a de Luiz, que vieram do próprio Jardim Kennedy. E que continuarão na espera por um lar até que a Caixa libere a obra.

A espera, no entanto, pode ser na rua, pois a Prefeitura entrou com pedido de reintegração de posse.

As famílias do topo do morro podem ter de voltar para a parte de baixo do morro a qualquer momento. É assim a vida no abismo. É assim a vida no Jardim Kennedy.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Árvores-patrimônio estão com problemas

A matéria de hoje não se trata de jornalismo literário, mas sim de um alerta que você só lê aqui, no Narrativas do Real. Depois que um galho da figueira no Parque Celso Daniel, em Santo André, caiu e matou uma mulher, sai acompanhada de dois especialistas para avaliar a situação das outras árvores tombadas da região, as duas São Bernardo. Comentem e divulguem, pois algo precisa ser feito por esses exemplares antes que causem acidentes.

Árvores-patrimônio estão com problemas

Especialistas da UFABC avaliam Árvore dos Carvoeiros e Jatobá da Vergueiro, em São Bernardo


Por: Camila Galvez
Árvore dos Carvoeiros corre risco de desabar

Elas são frondosas, antigas, históricas e estão com problemas. Essa é a situação das três árvores tombadas pelos órgãos municipais do patrimônio no Grande ABC: a figueira do Parque Celso Daniel, em Santo André, a Árvore dos Carvoeiros e o Jatobá da Vergueiro, ambas em São Bernardo.

Após a queda de um galho da figueira andreense, que matou a aposentada Leda da Silva Maubrigades, 68 anos, há cerca de duas semanas, o Diário convidou especialistas da UFABC (Universidade Federal do ABC) para avaliar os outros patrimônios arbóreos da região. Eles constataram doenças que podem matar as plantas, principalmente no caso da Árvore dos Carvoeiros.

Trata-se de uma figueira que fica na marginal esquerda da Via Anchieta, na altura do quilômetro 24. Os motoristas que trafegam apressados rumo à Capital sequer notam sua presença em meio as outras árvores. Apesar de ser aberta à visitação, para chegar até a figueira é preciso pular o guard-rail, pois não há acesso.

Ao redor da planta, uma estrutura de cimento cobre as raízes e serve como espaço para depósito de oferendas. Na favela próxima, moradores desconhecem a importância histórica da árvore centenária que servia de pouso para os trabalhadores das minas de carvão. A espécie foi tombada pelo Compahc-SBC (Conselho do Patrimônio Histórico e Cultural de São Bernardo) em 1999, por sua representação histórica e também por se tratar de um exemplar das matas nativas da região.

A especialista em botânica Andréia Onofre de Araújo e o ecologista vegetal Márcio de Souza Werneck constataram que a figueira está contaminado por cupins, fungos e taturanas. Um dos lados do tronco tem um buraco enorme próximo à raiz, causado por cupins. É possível observar até mesmo uma caixa de abelhas dentro do orifício.

MORTE
Para Andréia, é impossível recuperar o exemplar. “Ela parece estar sem cuidados há muito tempo”, afirmou. Werneck destacou que a árvore abriga várias epífitas, que são plantas que se instalam sobre os troncos e galhos da árvore e convivem em harmonia com ela. “São bromélias, samambaias, plantas da família dos cactos, entre outras”, enumerou.

Segundo os especialistas, é impossível saber por quanto tempo a árvore vai resistir a contaminação. “Ela vai secar e tombar. Ou vai tombar antes mesmo de secar, nas condições em que se encontra”, avaliou a especialista em botânica.

O risco é enorme, já que a árvore está a poucos metros da pista da rodovia Anchieta e poderia causar um acidente de grandes proporções.

A Prefeitura de São Bernardo afirmou, em nota, que a figueira fica em área de domínio da Dersa (Desenvolvimento Rodoviário S.A.), que é a responsável pelo seu monitoramento. Mesmo assim, o Departamento de Parques e Jardins deve entrar em contato com a empresa para vistoriar as condições e, se necessário, realizar trabalho de manutenção na árvore. A Dersa não se manifestou.

Jatobá da Vergueiro pode ser estrangulado
A situação do Jatobá da Vergueiro, segundo os especialistas da UFABC (Universidade Federal do ABC), não é tão ruim quanto a da Árvore dos Carvoeiros. O ecologista vegetal Márcio de Souza Werneck explicou que a madeira do jatobá é mais forte e resistente e sofre menos contaminação por agentes externos.

Mas o jatobá não está livre de problemas. No meio do tronco e entre os galhos da árvore cresce uma planta chamada mata-pau, conhecida como estranguladora. “A raiz dela desce até o solo para se alimentar. Em cerca de 10 anos, o tronco fica rodeado pelas raízes do mata-pau, que estrangulam a árvore para tomar o seu lugar”, explicou.

Na avaliação da botânica Andréia Onofre de Araújo, a Prefeitura precisaria monitorar a planta. “É um problema fácil de resolver: é só arrancar o mata-pau”, destacou.

A jornaleira Marilei Aparecida Tamani, 55 anos, instalou sua banca há quase 20 anos sob a sombra do jatobá, tombado desde 2006 pelo Compahc-SBC (Conselho do Patrimônio Histórico e Cultural de São Bernardo). “Há quatro anos a Prefeitura veio aqui e cercou a árvore porque muita gente arrancava folhas e pedaços de madeira para fazer chá. Mas agora eles só voltam pra cortar a grama. São os moradores que cuidam dela”, afirmou.

A comunidade desenvolveu uma relação de carinho com o exemplar. Dona Marilei conta que, na época em que a árvore dá frutos, ela enche sacolas e distribui para a população. “Vem gente de tudo quanto é canto pra pegar”, garantiu.

A Prefeitura de São Bernardo afirmou que o jatobá apresenta boas condições e o ataque observado não está comprometendo o estado fitossanitário da planta. Mesmo assim, prometeu realizar nesta semana a remoção dos organismos.

Tombamento de espécies é previsto em lei
O tombamento de árvores consiste em um instrumento legal de preservação de espécies vegetais, fundamentado pelo artigo 7 da Lei Federal 4.771/65 do Código Florestal. Segundo essa lei, “qualquer árvore poderá ser declarada imune de corte, mediante ato do Poder Público, por motivo de sua localização, raridade, beleza ou condição de porta-sementes”.

Conforme a Prefeitura de São Bernardo, as árvores tombadas passam pelo mesmo processo que os demais patrimônios materiais da cidade. São bens preservados pelo seu significado em um momento histórico, pela identificação das pessoas em relação a eles e pela referência na memória do povo.

Em todo o país existem árvores tombadas pelo patrimônio. Curitiba tem oito árvores tombadas pelo Patrimônio Histórico do Paraná: um anjico-branco, uma ceboleira, uma paineira e cinco tipuanas, espalhadas por ruas, parques e áreas particulares.

Na Ilha de Paquetá, no Rio de Janeiro, há amendoeiras, jaqueiras, mangueiras algodoeiras e tamarineiras tombadas, além de um enorme baobá conhecido pela população como Maria Gorda. 

segunda-feira, 4 de abril de 2011

A vida em meio ao nada

Hoje apresento a história do Flávio. Ele e a mãe vivem na Estrada da Pedra Branca, em São Bernardo, em terreno doado pelo antigo proprietário de uma chácara. A chácara foi vendida, eles não tem documentação do imóvel e, por isso, não conseguem receber indenização da Dersa, que retirou de lá os moradores para implantar um parque como compensação ambiental das obras do Rodoanel. E agora eles enfrentam...

A vida em meio ao nada

Família é esquecida em área do futuro Parque Riacho Grande, em São Bernardo

Por Camila Galvez


Foto: Nário Barbosa/Dgabc

O imóvel de número 1.859 da Estrada da Pedra Branca, no Bairro Montanhão, em São Bernardo, pode parecer abandonado, tal como os que resistem de pé em seu entorno. Entretanto, o portão aberto e a figura de boné e blusão recostada ao muro denunciam: ali vive uma família.

Benedita Gonçalves Pereira Peres, 81 anos, e Flávio Eduardo Peres, 44, são mãe e filho. Moram na mesma casa há 16 anos, quando vieram da Vila Gerty, em São Caetano, a convite do antigo proprietário de uma chácara. No terreno oferecido por ele, sem qualquer documentação, ergueram um pequeno imóvel de quatro cômodos.

Há três anos o tormento chegou: as obras do Trecho Sul do Rodoanel trouxeram caminhões carregados de materiais, que provocaram enormes rachaduras nas paredes e agravaram os problemas respiratórios de dona Benedita. “A casa ficava cheia de poeira, e a cama tremia quando os caminhões passavam”, relembra.

Desde que a obra começou, mãe e filho aguardam a hora de serem removidos pela Dersa (Desenvolvimento Rodoviário S.A.), que pretende implantar na área o Parque Riacho Grande, previsto nas compensações ambientais do Rodoanel. Viram vizinhos receberem indenizações equivalentes a R$ 400 mil pelas chácaras que habitavam às margens da represa Billings. Para eles, porém, restaram o isolamento e a insegurança.

A área que antes tinha mais de 20 vizinhos, hoje não tem nenhum. Algumas casas não foram demolidas e, segundo Peres, tem gente entrando para roubar qualquer coisa, de telhas a fiação. Neste cenário, ele abandonou o emprego de vigilante noturno. “Não posso sair para trabalhar, como vou deixar minha mãe sozinha?”.

Quando vai ao mercado para abastecer a casa, geralmente após dona Benedita receber a aposentadoria, Peres faz toda a compra do mês de uma só vez. “Aqui não tem mercado nem padaria. Não lembro a última vez que comemos pão francês. De vez em quando os pescadores traziam pra nós, mas agora até os barcos estão rareando”, disse.

Distâncias
Depois de caminhar por 20 minutos, Peres finalmente chega ao ponto de ônibus, na Estrada do Montanhão. Dali é mais meia hora até chegar ao Jardim Silvina, onde costuma fazer compras. “Quando chego, ligo pra minha mãe pra saber se ela está bem”, garantiu. Depois, é o supermercado quem entrega as mercadorias.

De repente, uma surpresa: o caminhão de lixo da Prefeitura de São Bernardo cruza a estrada deserta e recolhe os sacos plásticos da casa de Peres. “Eles ainda passam por aqui. E o carteiro também. O telefone funciona. E a televisão. São as nossas distrações”, comentou.

De vez em quando ele também aproveita o tempo bom para pescar nas águas da represa. “Quando cheguei, isso era o paraíso. Agora se tornou o inferno”. E pior: ele não tem ideia de quando vai sair dali. E nem a Dersa, que afirmou estar em negociação com a família, sem prazo para a remoção, embora o cronograma aponte que o parque chegará em maio.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Ela ama os animais

Oi! Tem alguém aí?

Se vocês andam lendo alguma coisa desse blog, se ainda tem paciência para esperar pelas novidades, deixem um recadinho pra eu saber que passaram por aqui.

E hoje segue a história de uma pessoa muito especial que conheci nas minhas andanças como jornalista. Alguns podem dizer que ela é louca, mas o trabalho que ela faz é louvável. Espero que gostem e, se puderem, ajudem nesta causa.

Ela ama os animais

Ana Maria Matenaur cuida de mais de 150 cães e admite: prefere os bichos às pessoas


Por: Camila Galvez

Fotos: Fernando Nonato / DGABC

Logo que se chega ao Parque Riacho Grande, em São Bernardo, é possível avistar cães trotando pelas ruas de paralelepípedos. São de todas as cores: pretos, brancos, marrons, malhados, amarelos. Não tem lar definido e vagam pelas ruas em busca de abrigo e alimento. Cenário parecido com muitas outras ruas da região metropolitana de São Paulo.

Ao parar diante da casa de Ana Maria Matenaur, 57 anos, percebe-se logo que ali vive alguém que ama os animais: cerca de dez cachorros me recebem no portão. Dentro, mais de 70 esperavam para fazer festa, pular e latir sem parar.

“Vivo pelos animais”. É assim que Ana Maria define sua rotina, e não é exagero: há mais de 30 anos ela se dedica exclusivamente a cuidar de cachorros na sua própria casa, que transformou em verdadeiro canil. Recebe ajuda de amigos e parentes para manter o aluguel do imóvel, de R$ 600, e a ração e comida diária para os cachorros, além de remédios, castração e tratamentos veterinários.

Mas não são só os cães que ela tem em casa que recebem tratamento VIP. Por todo o bairro há cerca de 80 animais que são alimentados pelas mãos de Ana Maria. Caso de oito cães que foram abandonados no Parque Estoril e recebem comida da cuidadora duas vezes por dia.

O problema é que, desde a última segunda-feira, Ana Maria foi proibida de entrar dentro do parque para alimentar os animais. “Os veterinários alegam que vão dar uma solução para os bichos. Mas não podem deixar meus meninos passando fome. Isso me parte o coração”.

Memória
Os animais do Estoril têm nome, assim como os outros bichinhos de quem Ana Maria cuida. E não pense que a protetora tem dificuldades para se lembrar: ela aponta com precisão cada um deles: Caramelo, Dafne, Spike e Dalila. Os outros quatro (Scooby, Petita, Pretinha e Brady) não apareceram para comer. “Se eu não entro, como vão saber que estou aqui?”.

A briga com o veterinário do parque é séria. Ele garante que a forma como a cuidadora alimenta os animais é inadequada e, por isso, ela foi impedida de entrar na área verde. Ana Maria oferece a comida em folhas de jornais, pois alega não ter condições de adquirir vasilhames para cada animal. “A verdade é que eles acham que eu sou louca”. Ela dá de ombros. “Fazer o quê?”

Loucura
Ana Maria já fez loucura pelos bichos. Ela também vendeu tudo o que tinha dentro de casa para garantir o sustento dos cachorros. Ao invés de móveis, os cômodos são tomados por camas e cobertores para os animais, além de sacos e sacos de ração e arroz especial. Ela dorme em um sofá, num cantinho da casa, rodeada pelos cães. “Gosto mais de bicho do que de gente”, garantiu.

E não é a toa: em dezembro de 2009, a protetora registrou boletim de ocorrência após ser atacada por um adolescente e uma jovem grávida quando tentava resgatar Tonha, uma pit-bull que vagava pelas redondezas. Mais de um ano depois, Ana Maria ainda tem os dentes tortos por causa da surra e um dedo quebrado que nunca se curou.

Mesmo assim, não pretende desistir de seus cachorros. “Vou continuar cuidando deles até o fim. É minha missão”.

Se você tem o mesmo espírito, que tal ajudar a Ana Maria nesta empreitada? Ela recebe qualquer tipo de doação, desde itens para cães até móveis e roupas usadas, que ela revende. Interessados em patrocinar o projeto ou ajudar de alguma maneira, basta entrar em contato pelos telefones 4354-0973 ou 6853-5910.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Ensaio Pessoal

Ensaio Pessoal também é Jornalismo Literário. O ensaio abaixo foi minha primeira tentativa, produzido durante a maravilhosa aula do Edvaldo Pereira Lima.

Enquanto leio o livro O ano do pensamento mágico, de Joan Didion (recomendo), continuo buscando inspiração para lembrar se algum episódio da minha vida valeria um ensaio pessoal. Tenho alguns em mente, mas acho que nenhum forte o suficiente para ser um TCC dessa pós que, por si só, transformou a minha vida em todos os sentidos.

É, eu sumi. As coisas andam meio complicadas, ando meio sem tempo de mergulhar no Jornalismo Literário como gostaria. Por enquanto, faço um convite para que mergulhem um tiquinho dentro do oceano que sou eu. E descubram...

Por que escrevo?

Por: Camila Galvez

Uma folha quadriculada, de papel pautado, seis linhas preenchidas com espaço entre cada uma delas. Letra meio desgrenhada de criança, mas redonda. Lá estava o espantalho feliz, sorrindo pra mim. Desenho nunca foi o meu forte, mas pintava com gosto. O problema era que muitas vezes cansava de forçar o lápis no meio do caminho. A força maior sempre dediquei às letras pequenas no papel.

Tinha sete anos e um mundo de possibilidades se desenrolava diante de mim: a folha quadriculada e pautada era um passaporte que me levaria sempre para a mesma viagem, não importa o que eu escreva. A viagem era sempre para dentro de mim.

- Parabéns, Camila! Vou mostrar seu texto para as outras salas, está ótimo.

Mostrar minha primeira redação para as outras salas? Que erro! Me acostumei com a ideia de que gosto de ser lida, gosto de saber que agrado, que organizo as palavras como se elas pudessem ser domadas. Como seu fosse capaz de dominá-las. Essa é a impressão que quero passar quando escrevo: de que faço tudo de maneira consciente, medida, pensada. Que emprego técnicas, métodos, meios e fins estéticos para alcançar aquele resultado.

A impressão que meu texto passa, porém, é falsa como uma nota de R$ 3. As palavras sempre me devoraram. Escrever o que gosto é me deixar levar por elas, deixar que elas façam esse estranho balé mental todas as vezes antes de se deitarem sobre o papel que as coloco, imortalizadas ali até o próximo cesto de lixo, seja real ou virtual.

Tenho um exército de letras à disposição, e é com elas que satisfaço minha necessidade crescente e constante de escrever sempre mais e melhor. Mas é um exército sem general, e eu também sou um soldado. Caminho com as letras e preciso delas para ter força. Sem a dominação que elas mantêm sobre mim, quem seria eu?

Não seria, com certeza, a adolescente que a partir dos 12 anos ganhou os três concursos de redação da escola em que estudava. A sala de leitura que eu havia devorado, pequena demais para mim, era o palco para minhas leituras interpretativas. Rostos de expectativa me estimulavam a prosseguir com meu teatro até o fim, sempre trágico, meu exército cumprindo o papel não apenas de me dominar, mas de dominar os que me ouvem e leem.

Vivi com a ficção escrevendo em primeiro lugar para mim, e para os outros logo em seguida. Não faz sentido escrever para não ser lido. Escrever cansa, dói a mão, a cabeça, às vezes até as idéias doem. Se não houvesse o prêmio, o fato de saber que as palavras também dominam os outros como elas me dominam enquanto escrevo, nada faria sentido.

Se perdi horas e dias escrevendo baseada em histórias de outros – e dos outros - foi porque quis ser lida. É egoísmo, e não há porque ter vergonha de dizer. Encontrar reconhecimento no próximo. Alcançar a dominação pelas letras, esses sinais gráficos tão traiçoeiros, é o que todo escritor almeja alcançar no fim.

- Prima, hoje perguntaram na loja que fui fazer compras se eu era parente da Mia Galvez.
- Como assim? Sério?

- É! É por causa do meu sobrenome no cartão de crédito, a menina reconheceu e disse que adora suas histórias.

O exército ganhou mais uma vez, mas não sem deixar um rastro de morte pelo caminho. Eu caio junto com ele todas as vezes, mas levo outros mortos comigo também. A palavra domina. Escrever é um ato egoísta. E humano.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Alojados

Feliz 2011, pessoal!

Agora que finalmente meu primeiro texto produzido para a pós-graduação foi publicado no Texto Vivo, posso disponibilizar aos leitores daqui. O professor provavelmente não gostou do meu título, mas preferi manter no original ao publicar aqui porque a ideia faz referência à música "Alagados", dos Paralamas do Sucesso, da qual gosto muito e que tem a ver com o tema.

A reportagem fala sobre a vida dos moradores dos alojamentos do Jardim Santo André, um bairro de Santo André que sofre muito com enchentes e deslizamentos nos períodos chuvosos. Espero que gostem de conhecer personagens como a Rosalina, mulher de palhaço, literalmente, a Claudinéa, muito bondosa e guerreira, e a Débora da Missionários, que adora passear nas Casas Bahia só para sonhar com móveis novos.

Bem vindo, ou bem vinda, ao Jardim Santo André.

Alojados

 A vida nos núcleos-pulmões construídos pela Prefeitura de Santo André para abrigar moradores que perderam tudo nas enchentes

Por: Camila Galvez

Claudinéa, Débora da Missonários e Maria Regina: mulheres de fibra
Foto: Camila Galvez

Favela.

 Fa-ve-la.

Aglomeração de casebres ou choupanas toscamente construídas e desprovidas de condições higiênicas.

- Ah, menino, vieram derrubar sua casa, é? Toma cuidado!

- E aí, sem-teto? Tudo bem, sem-teto? Como vai, sem-teto?

- Oh, sua casa caiu ali, viu?

No Jardim Santo André, as brincadeiras não têm só um fundo de verdade, mas são verdade por inteiro: 1.647 famílias vão ter de sair de lá porque seus imóveis estão localizados em áreas de risco de deslizamentos de terra. Qualquer chuva que tamborila sobre o telhado e faz chegar o sono de muita gente se torna nesse pedaço de chão da cidade de Santo André um pretexto para se começar a rezar.

O bairro possui sua própria divisão de classes: quem tem a plaquinha branca da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano) na porta de casa sabe que pode continuar ali e vai fazer parte do plano de urbanização proposto pelo departamento estadual em parceria com a Prefeitura do município. Mas quem tem o “picho”, a marca feita com tinta spray, às vezes vermelha, às vezes azul, tem um triste destino pela frente: alojamento ou bolsa-aluguel de R$ 380 mensais até que haja uma unidade habitacional disponível.

Por enquanto, apenas um projeto de unidades habitacionais da CDHU começa a sair do papel no segundo semestre de 2010, em terreno localizado no próprio bairro e que não deve atender a todas as famílias. A previsão para conseguir uma casa de verdade no Jardim Santo André é de ao menos dois anos. A expectativa de alguns moradores, porém, passa longe disso.

Patrimônio vivo

Rosalina de Sordi, ou simplesmente Rosa, é patrimônio do Jardim Santo André, mas em nada lembra uma estátua ou qualquer outra coisa estática. Na manhã de uma terça-feira fria e chuvosa, acorda de bom humor quando bato em sua porta. Seu gato branco e felpudo é quem me recebe antes mesmo da dona, que veste rapidamente uma blusa de moletom rosa para espantar o frio que entra pela porta aberta. Ela usa calça preta e chinelos de dedo com meias. É com eles que caminha no chão lamacento da rua dos Missionários para me mostrar terrenos que já abrigaram famílias e explicar sobre a angústia dos que terão de deixar o lugar que aprenderam a duras penas a chamar de lar. Rosa é minha porta para o Jardim Santo André.

Ela e o marido chegaram ao bairro nos anos 1980, quando havia cerca de 80 barracos de madeira e uma única casa de tijolos: a deles. Com a casa erguida feito um palácio no meio da favela que começava a se formar, Rosa não agiu como princesa. Se agiu, estava mais para princesa Diana: se misturou com o povo e brigou por melhorias como luz, água encanada, asfalto nas ruas, escola e posto de saúde. Hoje briga para continuar vivendo ali.

Do alto de seus 55 anos, não quer alojamento nem bolsa-aluguel. Abre a janela e vê o vizinho do lado direito ostentar uma plaquinha branca da CDHU. A casa de Rosa, no entanto, tem um “picho” em tinta vermelha para combinar com o adesivo do Partido dos Trabalhadores na janela, ao lado de um vasinho de pimenta, também vermelha, que “espanta o mau olhado”.

- Eu não aguentaria viver em alojamento. Sou velha demais pra isso.

O que Rosa não quer é deixar para trás a história que construiu no Jardim Santo André. Como viúva de palhaço, leva a vida dando risada e rezando para não chorar.

- Ajudava meu marido quando ele se apresentava para a criançada do bairro. Hoje vejo as crianças entrarem cada vez mais cedo pro tráfico de drogas. Que opção elas têm? Sabe, no começo eu não gostava daqui. Mas fui me adaptando e agora não troco por nada.

Seus olhos azuis lacrimejam. Não sei se é por causa da luz do dia, para quem acabou de acordar, ou se é o prenúncio do choro mesmo.

O dia em que a terra caiu

Outros olhos, desta vez os de Maria Regina da Silva, estão perdidos no horizonte e parecem vislumbrar novamente a cena relatada por sua voz. No dia em que a terra desceu pela primeira vez em um dos morros do Jardim Santo André, Maria cozinhava e seu filho mais velho tomava banho. O jovem saiu de casa nu, e ela sangrando.

Tudo começou com um barulho pequeno de pedrinha rolando, que virou um estrondo de tempestade quando a terra finalmente cedeu com força de avalanche. Estalos, telhas quebrando, madeiras de barracos rachando ao meio e gritos de socorro compunham uma estranha trilha sonora de filme de terror.

- Sai daí, menino, que o morro está descendo!

Foi o que a mãe conseguiu gritar antes que o fogão viesse em sua direção, uma chuva de comida quente e vidro quebrado que perfurou sua pele e a fez sangrar. Pratos se estilhaçaram, colheres ficaram cobertas de barro, todas as lâmpadas do barraco estouraram ao mesmo tempo. Mas Maria continuou vivendo no que restou de seu lar por cerca de um mês. Até que a tragédia voltou ao lugar.

Em 21 de janeiro de 2010 o pedreiro Antônio Soares Ribeiro foi soterrado por terra, lixo e restos de barracos que caíram sobre muitos outros moradores. Vizinhos acreditam que ele, no entanto, dormia na hora do ocorrido e, por isso, não teve tempo para abandonar o barraco.

- Quando a Defesa Civil achou o corpo, ele estava coberto com um cobertor igual o meu. Os olhos, a boca, tudo estava cheio de lama.

Quem me aponta o cobertor de flores verde e bege secando no varal é outra Maria, de sobrenome Lenice Pereira, que viveu o mesmo inferno que tirou a vida de Antonio e fez com que muita gente dali perdesse a casa e tudo o que tinha. Ao menos quatro famílias que vivem hoje nos alojamentos vieram desse morro, que não era considerado área de risco iminente em estudo feito pelo IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas) no bairro.

- Não gosto nem de lembrar o que passamos. As crianças choravam de fome. A gente não tinha mais talheres pra comer, e nem comida, porque a maior parte estragou. Comemos o que dava pra comer com as mãos.

Se a situação está melhor agora, não é ainda o que as Marias do Jardim Santo André almejam. As Marias querem casa. Hoje, são alojadas.

Alojamento.

 A-lo-ja-men-to.

 Ação ou efeito de alojar. Abarracamento, acampamento, aquartelamento. Lugar onde alguém ou alguma coisa se aloja.

Os primeiros alojamentos chegaram no início deste ano ao bairro que retrata as mazelas habitacionais brasileiras reunidas no mesmo lugar. Ali se vê, quase parede com parede, casas de tijolos, barracos, prédios de apartamentos da CDHU e esses caixotes de madeira chamados pela Prefeitura de núcleos-pulmão. Na Rua dos Dominicanos, primeira a ganhar os alojamentos, há 20 unidades erguidas ao custo de R$ 8,5 mil cada uma. Em fase final de construção, há mais 78 espalhadas por outros locais do bairro.

Cada unidade é feita de quatro paredes de madeirite pintadas de preto. Como cobertura, telhas do tipo brasilit, que esquentam no verão e esfriam no inverno. São coladas parede com parede às vizinhas, formando um tipo de sistema circulatório composto de veias interligadas pelas mesmas dores e sons que se misturam em rádios e televisores de volume alto. A ideia inicial era abrigar famílias com até um filho no menor alojamento, um cômodo de 19 metros quadrados. Claudinéa Pereira da Silva vive num deles com três.

O berço

Dantiele, 11 anos, Marcos, 9 anos, e Ana Giulia, 1 ano e 7 meses, são filhos dessa morena de olhos escuros e alma clara que me faz perguntar como gente que perdeu tudo na vida consegue se levantar e receber quem chega com um sorriso no rosto. A força da fé parece mover o Jardim Santo André, principalmente na casa da irmã Claudinéa. O rádio ligado na música sertaneja de Chitãozinho e Xororó e o alojamento arrumado e limpo, apesar de apertado, são um convite para ficar um pouco mais. Mesmo que a pequena Ana Giulia esteja com bronquite, tossindo sem parar.

A vida de Claudinéa começou difícil. Ainda menina, veio de Atalaia, no interior de Alagoas, com pai, mãe e a irmã Adriana Pereira da Silva, um ano mais velha e que também vive com os três filhos no alojamento. O pai veio em busca de uma vida melhor, como milhares e milhares de retirantes expulsos do Nordeste do país pela pobreza extrema que ainda persiste por lá, tal e qual um mandacaru diante da seca mais assustadora.

A vida não foi tão difícil no Nordeste quanto se tornou na época em que Claudinéa e os filhos foram obrigados a viver num abrigo. Em 21 de dezembro de 2009 cerca de 30 famílias foram enviadas para o ginásio Pedro Dell’Antonia removidas de áreas de risco que ameaçavam ser engolidas pela avalanche de terra, plantas e lixo que deslizou dos morros do Jardim Santo André.

Nos tempos de abrigo no Dell’Antonia, Claudinéa foi o anjo da guarda de muita gente. Ajudava quem podia enquanto cuidava dos três filhos. Porém, uma de suas grandes preocupações, ela confessa, era com o berço da filhinha menor, branco e rosa como manda a tradição.

- Meus dois primeiros filhos não tiveram berço porque não pude comprar. Esse comprei e paguei em prestações. Quando fui parar no abrigo, sumiram com todas as minhas coisas. Achei que tinha perdido o meu berço. Um dia o caminhão chegou com ele. Não me aguentei de felicidade.

Voltaram também a televisão e uma cômoda com a madeira toda estragada, mas que ainda serve para guardar a pouca roupa que a família tem. O resto, cama para ela e para os pequenos, quem garantiu foi um carroceiro que ela alimentou enquanto esteve no abrigo.

O choro não é uma constante na vida da mulher que fuma um cigarro atrás do outro e toma copos de café para espantar a fome. No abrigo chorou sim, mas sem ninguém ver, com o rosto enfiado no travesseiro e na hora de conversar com Deus. Chorou pelos filhos, pelo desespero de não ter um teto para abrigá-los. A maior preocupação de Claudinéa são suas crianças. Dantiele, a filha mais velha, sabe disso.

- Minha mãe e eu dormimos debaixo de uma tenda antes de ir para o abrigo porque o nosso barraco caiu. Depois, dormimos no que sobrou do barraco da minha tia, e tinha um cômodo pra ser dividido entre dez pessoas. Ficamos assim mais de um mês até que não teve mais jeito: levaram a gente para o ginásio e deixaram lá.

A menina que deixa a mãe secar seus cabelos com um secador comprado a prestações relembra aos risos tudo o que passou, mas na hora de estimar quanto tempo a família vai permanecer alojada, Dantiele é pessimista.

- Acho que vamos ficar bem mais que os dois anos que eles disseram.

- Para com isso, menina. Deus há de nos dar uma casa. Ela e o Marcos, meu menino, falam que eu sou muito otimista, que queriam ter toda essa fé que eu tenho de que as coisas vão melhorar. Não sei por que, não sei como, mas sei que vão.

- E quando vocês tiverem a casa de vocês, Claudinéa, como vai ser?

- Eu vou tirar minhas coisas da caixa, minha colcha bonita que usei no Dia das Mães, minhas almofadas que achei no lixo, novinhas. A história dessas almofadas é engraçada. Namorei elas por muito tempo. Elas ficavam num salão de beleza perto do abrigo e, quando passou o Natal, vi que tinham trocado o modelo. Corri olhar no saco de lixo e estava lá. Nem acreditei, parece que eram para ser minhas.

As moças que trabalhavam no salão de beleza deram risada de Claudinéa. Ela não se importou. As almofadas fazem parte do seu sonho por um teto.

Minha casa, minha vida

Sonho esse que Claudinéa compartilha com a irmã, Adriana Pereira da Silva. Converso com Adriana no escuro porque, pela terceira vez naquela quinta-feira, faltava luz no Jardim Santo André. A Prefeitura entregou os alojamentos sem voltagem de 110, necessária para o funcionamento da maioria dos eletrodomésticos vendidos na Região Metropolitana de São Paulo. Para resolver o problema, os moradores fizeram ligações irregulares, popularmente conhecidas como “gatos”, que não dão conta de abastecer todas as unidades e os deixam às escuras algumas vezes por dia, além de preocupados com a possibilidade de um incêndio. A tragédia iminente ronda o Jardim Santo André.

A filha mais nova de Adriana, Débora, de 3 anos, se agarra às pernas da mãe, sentada ao meu lado em um pedaço de madeira improvisado como cama. A menina tem os cabelos despenteados e parece querer chamar nossa atenção enquanto conversamos. A mãe se divide entre me contar sua história e atender a filha. Sua voz transmite rancor quando fala sobre os homens que a tiraram de seu barraco, que ela construiu com o dinheirinho que ganhou dividindo-se entre dois empregos.

- Fomos humilhados. Ameaçaram passar a máquina por cima das casas. Eu perdi tudo na vida: meu lar, meus móveis e minha dignidade.

As sobrancelhas grossas e escuras de Adriana ficam franzidas enquanto ela fala. Seus olhos escuros se estreitam para dizer o quanto ela está contrariada.

- O pior dia da minha vida foi quando cheguei naquele abrigo, mas pouca coisa mudou quando vim para cá. Me sinto em uma prisão.

Adriana trabalha uma vez por semana como diarista e precisa deixar as crianças trancadas no alojamento. A menor fica sob os cuidados da maior, Jenifer, de nove anos. Bruno, de 12, completa o trio.

A mulher que esfrega o chão do alojamento “até sentir o cheiro de limpeza” chegou a ganhar R$ 1.400 quando trabalhava como diarista em casas de família. Tentou, em vão, um financiamento habitacional para comprar a casa própria. Passou inúmeras vezes na agência da Caixa Econômica Federal esperando que seu pedido fosse aprovado. Quando o governo federal anunciou o programa Minha Casa, Minha Vida como uma forma de resolver o déficit habitacional brasileiro, Adriana teve, mais uma vez, esperança. A falta de uma assinatura em sua Carteira de Trabalho e Previdência Social, no entanto, nunca lhe deu o direito a um lar.

Na remoção da área de risco, Adriana perdeu mais que o barraco: perdeu o emprego. Só restou uma patroa.

- Hoje você ganha quanto, Adriana?

- Consigo tirar no máximo R$ 100 por semana. Trabalho de domingo de 15 em 15 dias, mas às vezes a minha patroa fala pra não ir porque não tem dinheiro pra pagar.

Ainda assim, a família de Adriana é a que ganha melhor ali, pois o marido também trabalha. Em oito dos 18 alojamentos que responderam a uma pesquisa informal, a média de renda é o salário mínimo de R$ 510. No Jardim Santo André, o chefe de família continua sendo o marido, caso de 11 dos 18 alojamentos. Mas vem ganhando espaço um outro tipo de chefe: o Bolsa Família, que sustenta exclusivamente três alojamentos, inclusive o de Claudinéa.

A esperança que ela tem em uma vida melhor não contamina a irmã. Adriana não quer esperar uma unidade habitacional. Quer trabalhar para comprar a sua casa e sair dali.

- Não quero mais morar em favela e não acredito em promessas. Vou sair daqui por mim mesma.

Pelo poder do senhor Jesus

Josete Maria de Souza é conhecida por Claudinéa e Adriana como Débora da Missionários não se sabe bem o porquê. Faz parte das 20 famílias que se mudaram no dia 8 de março para um dos caixotes da Dominicanos. Ficou no abrigo antes de chegar ao alojamento, como outras nove famílias que estão ali.

Vive em dois cômodos com cinco dos sete filhos e a mãe, Josefa Lúcia da Conceição Souza. O que mais chama atenção em Josefa são as unhas do dedão de cada mão, enormes, lembrando as do Zé do Caixão. Mas só as unhas do dedão de cada mão. As demais unhas são aparadas. Não há esmalte. Só unha, simples assim.

Josefa quer porque quer voltar para Alto do Rodrigues, no Rio Grande do Norte, onde o quarto marido a espera. Mas de quem ela lembra mesmo é do primeiro, e não é lembrança boa.

- Ele me batia muito. Pois sabe o que fiz um dia, quando cansei de apanhar? Peguei uma faca de cozinha e dei foi na barriga dele. Vi o sangue jorrar, saia que nem bolinha, e molhou tudo a roupa dele, ficou vermelho assim, ensopado. Daí ele me devolveu pra minha mãe e tomei foi uma surra de vara para aprender a respeitar marido.

A sina de mulher que apanha do marido se repetiu com Débora, mas ela parou no primeiro casamento. Diferente da mãe, que sempre foi “cabra macha”, ela não apanhou calada. Achou melhor pegar pela mão os sete filhos e deixar a vida de surras para trás. Foi parar em um barraco no Jardim Santo André.

- Dos que caíram em dezembro do ano passado, só o meu ficou de pé, mas meio assim, sabe?

E pende para o lado como se fosse um prédio torto. Sem ter onde ficar depois que o barraco caiu, foi parar com a mãe no abrigo improvisado no Ginásio Pedro Dell’Antonia, onde ficaram por dois meses. No alojamento, diz estar no céu.

- Deus me abençoou com isso aqui. Sei que não é meu, mas pelo menos tenho um teto que não ameaça cair na minha cabeça.

Mas Débora sonha. Quando conseguir o apartamento da CDHU, quer jogar toda a tranqueira que está no alojamento fora. A mulher de óculos e cabelos brancos que a fazem parecer mais velha do que realmente é gosta de passear com os filhos no Extra ou nas Casas Bahia. Entra nas lojas, caminha por fogões, geladeiras e armários e escolhe o que quer. Seus dedos encostam suavemente no eletrodoméstico e ela mentaliza que ele será seu.

- Pelo poder do senhor Jesus! Mas só quando eu tiver o meu teto pra colocar dentro.

Casa

 Ca.sa

 Nome comum a todas as construções destinadas a moradia. Residência, lar.