quinta-feira, 15 de abril de 2010

Entre o passado e o futuro

Nesta semana estive em uma aldeia indígena localizada em São Paulo, perto da divisa com São Bernardo. Uma balsa no Riacho Grande e uma hora e meia de estrada de terra depois, chegamos à aldeia do Krukutu, onde os índios me receberam muito tímidos e calados. Tive que usar uma certa psicologia para conseguir conversar com eles, além de ficar o tempo inteiro com uma sensação de que riam e falavam de mim quando começavam a conversar em guarani. Pode ser só aquela coisa de mania de perseguição, mas me senti muito assim. E isso foi bom, porque imagino que essa é exatamente a maneira como eles se sentem quando são obrigados a sair de suas aldeias e entrar no nosso mundo.

O que vi também foi que os índios de hoje em dia buscam retomar alguns aspectos de seus antepassados, mas também querem usufruir das tecnologias modernas. Vi na aldeia casa de pau-a-pique e chão de terra batida com geladeira, dois televisores, rádio, tudo dentro. É uma coisa estranha e, diante de meus olhos, só faz parecer que eles estão à procura de uma identidade que não existe mais. Não se sentem índios nem "homens brancos" e vagam no meio disso, entre o passado e o futuro que não sabem como será.

Abaixo está o resultado da visita. Críticas são bem vindas, porque não fiquei exatamente contente com esse texto. Mexi nele muitas e muitas e muitas vezes para deixá-lo o melhor possível, mas ainda assim acho que faltou algo. Digam-me vocês.

Entre o passado e o futuro

A aldeia Krukutu é um pedacinho de terra a uma hora e meia de São Bernardo onde índios até os sete anos falam guarani. Só guarani.

Por Camila Galvez


Foto: Amanda Perobelli

Ha'evite reju tekoa Krukutu py. Bem vindo à aldeia Krukutu. Espaço há uma hora e meia de São Bernardo no qual é possível ver crianças correndo de um lado para o outro e conversando exclusivamente em guarani. Não usam cocares, nem nada que as caracterize como índios, mas até os sete anos não conhecem outra língua que não a de seus antepassados.

Nesse pedaço de terra quase que intocado pela mão do homem vivem cerca de 250 pessoas, que tentam como podem conservar uma cultura que foi dizimada ao longo dos 510 anos que se passaram desde o descobrimento do Brasil. Descobrimento não, invasão, nas palavras de Luiz Karai, um dos coordenadores da aldeia. Naquela época, 1.500 etnias diferentes viviam em terras tupiniquins. Hoje, restaram pouco mais de 230. Os guarani da Krukutu são uma delas.

Iracema Martins da Silva está sentada ao lado de duas outras índias, Brisa da Manhã e Jandira Veríssimo, e observa as crianças da aldeia enquanto brincam. Iracema traz no nome a força da índia dos lábios de mel de José de Alencar, mas é de fala mansa e pouca. Veste-se como todos na aldeia: com roupas que podem ser encontradas em qualquer lojinha de bairro e chinelo havaiana – o dela, cor-de-rosa. Ali, quase todos usam as famosas sandálias de plástico que hoje viraram símbolo de status para alguns, mas que continuam sendo as boas e velhas – e baratas – havaianas de sempre. As mulheres são tímidas e conversam mais entre si que comigo. Falam guarani, e não entendo uma palavra sequer.

As crianças que Iracema, Brisa e Jandira observam brincar são miudinhas, magrinhas e de cabelos bem lisos, variando entre um tom de castanho escuro e um preto cor de breu. Dos 250 moradores da aldeia, ao menos 90 são crianças, de acordo com Karai, mas arrisco dizer que são mais. Ao menos são os gritinhos em guarani dos pequenos que se fazem mais presentes em todo o ambiente da aldeia.

Resolvo perguntar se uma das índias me levaria para conhecer a casa onde vive. Iracema se prontifica, não sem antes hesitar um pouco, soltar risadas tímidas e dizer algo em guarani às amigas. Mas a moça de cabelos muito pretos e olhos de jabuticaba se levanta e resolve me levar para conhecer o lugar onde mora.

Para chegar ao lugar no qual Iracema mora há uma pequena trilha cheia de pés sem banana, que leva até uma casa feita de pau-a-pique. A única coisa que delimita o pedaço de chão da família de Iracema é uma pequena cerca, que se estende apenas à frente da casa. Os fundos dão para a mata fechada depois do varal lotado de roupas coloridas, moletons e calças jeans, todos limpos graças à máquina de lavar.

A índia que me acompanha se detém por uns momentos para acariciar um pequeno sagui cinzento e inquieto encerrado dentro de uma gaiola de passarinho pendurada na porta da casa. Ao entrar na construção com chão de terra batida, não vejo nada muito diferente do que já vi em algumas favelas do ABCD: um quarto pequeno que abriga televisão, ventilador, uma cama de casal e três de solteiro para ser dividida entre os quatro filhos de Iracema, com idades entre três e nove anos. Na cozinha há também a geladeira, uma nova televisão e a máquina que lava a roupa pendurada no varal. Só fogão não tem.

- Por que não tem fogão, Iracema? Você gosta de cozinhar no chão, com lenha?

- Gosto não. Eu queria um fogão, mas ainda não consegui.

- E o rádio? As rádios pegam aqui na aldeia?

- Funciona normal. O que a gente gosta de ouvir mais é música black.

E sorri ao lado de dois de seus filhos, Márcia e Gilson, quando fala sobre suas preferências musicais. Iracema tem 24 anos. A minha idade. Mas nossos mundos são diferentes. Ela nasceu na aldeia, e ali cresceu entre as crianças. A mãe de Iracema, Alice, veio do Paraná quando se casou. Hoje está rodeada de mulheres e procura pulgas num filhote de cachorrinho preto e branco. Veste calça e blusa preta e uma touca de lã na cabeça, embora o sol brilhe no céu com poucas nuvens. Usa trança no cabelo preto, comprido e brilhante, que apesar da idade (Iracema acha que ela tem cerca de 75 anos), quase não tem fios brancos. Pés descalços. Os pulsos e os tornozelos cobertos de pulseiras de contas coloridas. Quase não fala português. Iracema é quem traduz para mim.

- Vim do Paraná com meu marido. A família dele era daqui. Quando cheguei, gostei e fiquei.

- Mas como era a aldeia quando a senhora chegou?

- Era bem diferente. Tinha mais natureza, mais mata. Gostava mais.

Iracema dá risada.

- Sabe que uma vez a CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano) veio aqui oferecer pra construir casa de tijolo pra gente. Nós não quis, não. Prefere morar assim, em contato com a mata. Outras tribos perto daqui tem casa desse jeito, mas gosto mais é da casa de barro.

Alice fuma o cachimbo sagrado da tribo, o petyngua, cuja fumaça leva os pensamentos até Nhanderu, o criador de todas as coisas para os guaranis. Na cultura dessa etnia, começa-se a fumar ainda criança, e por isso muitas delas estão em volta de Alice quando ela está fumando. O petyngua desenvolve a religiosidade e, ao chegar a adolescência, se o índio tiver o dom, pode se tornar um pajé. Caso contrário, continua usando o cachimbo toda vez que deseja se sentir mais próximo de Nhanderu.

Ao me despedir da aldeia, encontro Karai usando um computador no escritório da tribo. Enquanto digita e mexe habilmente com o mouse, explica:

- O homem tem que tomar cuidado com o modo como trata a natureza. Precisa aprender com o índio para preservar. A modernidade e as novas tecnologias podem acabar com o mundo. Precisa mudar isso. Aqui queremos preservar o que quase acabou.

A aldeia consegue manter alguns resquícios da vida indígena como ela foi no passado. Artesanato, coral de crianças, escolas bilíngues que ensinam guarani. Mas ao mesmo tempo, está claro o quanto o índio sofreu e se modificou com a chegada do “homem branco”. Ali, sonhos de uma vida tranquila e reclusa se confundem com desejos de possuir eletrodomésticos e um carro que não os faça andar por cinco horas quando precisam sair da aldeia para comprar alimentos, já que nada cresce no solo dali.

- Quero que meus filhos cresçam aqui e fiquem aqui com o pai e a mãe até que a gente se vá. Não quero que saiam. Essa é a casa deles, a família deles cresceu aqui. Não tem nada lá fora para eles.

E em meio à geladeira, ao sonho de ter um fogão e às músicas black que tocam no rádio, Iracema tenta preservar um pouco do que restou da cultura guarani na aldeia Krukutu.


Do Amazonas para o ABCD

Foto: Divulgação

O ABCD não tem aldeias indígenas, e a mais próxima é a do Krukutu, que fica em São Paulo, próxima à divisa com São Bernardo. No entanto, a ong Opção Brasil, que cuida das causas dos índios na Região, estima que há 5 mil deles espalhados pelos sete municípios.

Nesta semana, São Bernardo realizou diversas palestras sobre o tema para marcar a V Semana Indígena da cidade. No evento realizado no Serviço de Memória e Acervo, encontro Bu’ú Tukano trajando calça bege, camisa azul clara e branca e sapato social caramelo. No pescoço, um colar de sementes pretas e vermelhas evidencia sua origem, assim como o rosto, reconhecível para qualquer um que saiba um tiquinho de nada sobre a cultura indígena: cor da pele avermelhada e cabelos compridos, lisos e negros emoldurando a face arredondada e característica. Engatamos uma conversa antes da palestra começar, na qual Bu’ú me conta um pouco sobre sua vida.

- Aos 15 anos deixei aldeia onde nasci para estudar. Meu pai preocupava muito com alcoolismo e quis que eu tivesse vida diferente.

- Esse problema era sério na aldeia onde você nasceu?

- Bebida é normal ter na aldeia. Toda semana tem bebida preparada pelas mulheres, a diferença que é feito de forma natural como faziam nossos antepassados. Eu dificilmente via índio caindo, era raro isso acontecer.

O nome Bu’ú quer dizer “tucunaré” e significa pessoa de vida curta e brava. O índio nasceu na aldeia Kayra, no Rio Tiquié, município de São Gabriel da Cachoeira, no Alto Rio Negro, Estado do Amazonas. Hoje Bu'ú não vive mais em aldeias. É um dos fundadores e assessor da Associação de Artes Indígenas Poterikharã Numiã. Também é reconhecido como o primeiro indígena Tukano artista plástico da Amazônia.

Bu'ú não gosta da palestra que assistimos, apresentada pelo professor e doutor do Departamento de Antropologia da Unicamp, John Manuel Monteiro. O estudioso expôs sua teoria de que o índio não foi apenas uma vítima silenciosa e silenciada da colonização, mas também participou dela e usufruiu dos novos conhecimentos que essa participação possibilitou.

O índio ao meu lado questiona até que ponto isso trouxe benefícios para eles.

- Os colonizadores chegaram colocando tudo que era nosso costume, principalmente nudismo, como coisa do diabo. Os povos indígenas praticamente foram obrigados a se converter a catolicismo. Tivemos grande perda nessa parte. Ao menos hoje na educação posso dizer que recuperamos, afinal apesar de ter pontos negativos, hoje maioria da minha região tem no mínimo ensino médio.

- Mas a cultura se perdeu um pouco, não é mesmo?

- Para vocês é inteligente quando se é mestre e doutor, e é natural ficar lendo e fazendo suas colocações e o público ver uma situação maravilhosa. A diferença do índio é que todo conhecimento é passado oralmente, e até hoje continua assim. O índio que nasceu e cresceu da aldeia sai como mestre ou doutor na minha visão, por que sai já com todo conhecimento dos antepassados, conhecendo xamanismo, rituais, grafismo, entre outros. Vocês tem que deixar o índio viver da maneira dele e reconhecer inteligência dele.

É isso que Bu'ú, Iracema, Alice e Karai querem.

3 comentários:

  1. Texto primoroso. Até aí nenhuma novidade. Novidade foi conhecer a realidade atual dos índios, aliás há tempos os grandes jornais não publicam algo sobre eles. Gostei muito dessa observação quanto ao uso da tecnologia, por mais que eles queiram se livrar disso, ao menos nas palavras do Karai. Resumindo: aprendi mais um tantão com essa jornalista de primeiro nível.

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  2. Seu texto está impecável! Gostei muito de ler, os dois.
    Eliane Santos, jornalista

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